Toda vez que a roteirista Jaqueline Vargas responde 'não' à pergunta "Você tem filhos?" ouve um longo e pesaroso "Ahhhhhhhh!". "É como se não ter filhos fosse uma tragédia", diz. Passado o susto inicial, logo surgem os primeiros questionamentos: "Quem vai cuidar de você na velhice?" e "Por que você não adota uma criança?" são os mais recorrentes.
E não é só isso, conta ela. As pessoas ainda lhe questionam se ela tem algum problema de saúde e, por último, propõem soluções infalíveis.
"A grande maioria tenta ajudar a resolver essa falta de filho. A possibilidade de simplesmente não querer ser mãe é uma das últimas que surgem e quase sempre para encerrar o assunto", acrescenta.
Autora de filmes, novelas e séries, como Predestinado (2022), Floribella (2005-2006) e Sessão de Terapia (2019-2021), Jaqueline Vargas acaba de lançar o livro Aquela que Não É Mãe (Buzz Editora). Nele, reúne poemas ("No paraíso não existem mães / No paraíso não existem filhos / No paraíso apenas existem") e reflexões ("Não é uma doença o que eu sinto. Não é uma doença não querer ter filhos. Eu não quero ter filhos") sobre o tema. A decisão de não ter filhos, conta a roteirista, veio aos poucos. Primeiro, ainda jovem, aos 18 anos. Depois, voltou a pensar no assunto aos 33. E, por fim, perto dos 40, resolveu assumir.
A família não criticou sua decisão. Mas, por outro lado, sempre incentivou a maternidade. Não só a família, mas a sociedade, que sempre associou a figura materna a algo único, sagrado, imaculado: "o momento mais lindo na vida de toda mulher", dizem... "Quando uma mulher abre mão de ser essa criatura sagrada para ser só uma mulher, como se isso fosse pouco, causa assombro. Afinal, sempre foi incumbida de várias funções, como cuidar da casa, dos filhos, dos idosos e por aí vai. A mulher como cuidadora de si mesmo é algo relativamente novo", observa. "Para muitas pessoas, a mulher que não quer ter filhos é uma mulher estranha, que causa assombro. E, diante do assombro, muitas pessoas podem ser hostis".
Desejo pessoal x pressão social
Mulheres sem filhos não estão livres de sofrer ataques ou enfrentar preconceitos. No dia 12 de outubro de 2021, a jornalista Ana Paula Padrão estava na casa de uma amiga quando, lá pelas tantas, pensou em postar uma foto linda com o filhinho pequeno dela. Em vez disso, publicou um texto no Instagram que dizia: "Hoje é Dia das Crianças e não há crianças em casa. Eu não tive filhos. E, acredite em mim, a vida sem filhos não é uma vida vazia…". Para surpresa da jornalista, o texto viralizou nas redes sociais. "Para mim, é um assunto muito natural. Mas percebi que destampei uma caixa de tabus. A repercussão me surpreendeu", relata a apresentadora do programa MasterChef, da Band.
No texto, Padrão conta que já sofreu um aborto espontâneo. Diz ainda que, hoje em dia, entende que a vontade de engravidar estava mais relacionada à pressão social do que a um desejo pessoal.
"Quando me perguntam se tenho filhos, digo que não com tamanha tranquilidade que isso desarma as pessoas", prossegue Padrão. "Não sou e não pareço ser uma mulher triste. Não me sinto incompleta. Minha vida é feliz e bastante divertida. Acima de tudo, sou quem eu queria ser", garante. "É difícil criticar uma pessoa realizada como eu por não ter seguido uma expectativa coletiva. Essa cobrança não me afeta. Fala mais sobre quem cobra do que sobre as minhas escolhas".
Ter ou não ter: eis a questão
No Brasil, 37% das mulheres em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não pensam em ter filhos em nenhum momento. E 81% não pensam em ter filhos pelo menos nos próximos cinco anos. Entre as entrevistadas, 56% estão em uma relação estável e 74% trabalham integral ou parcialmente. É o que aponta uma pesquisa realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (TANCO). O estudo entrevistou 726 ginecologistas e 7 mil pacientes (1,1 mil brasileiras).
"Ainda hoje, mulheres que não querem ter filhos são obrigadas a escutar que são egoístas ou questionadas se têm algum trauma psicológico", constata a antropóloga Mirian Goldenberg. "O mais curioso é que as próprias mulheres cobram de outras mulheres que elas sejam mães. Como se a maternidade fosse a única escolha legítima ou, ainda, a mais legítima de todas".
Goldenberg sabe do que está falando. Ela nunca teve filhos. E já escreveu até crônica sobre o assunto, Ter ou Não Ter Filhos: Eis a Questão, de 2017.
"Apesar da cobrança social e da pressão das amigas, decidi, desde muito jovem, que não teria", diz o texto.
Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela conta que, no seu caso, não houve um momento em que decidiu não ser mãe. Ela simplesmente nunca teve esse desejo. Seus dois ex-maridos queriam. Tanto que, depois que se separaram, tiveram.
"Nunca me senti cobrada. Nem pela minha família, nem pelos meus ex-maridos. Me senti cobrada, sim, pelas minhas amigas e por outras mulheres".
Em 2012, a professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Thássia Souza Emídio, publicou um estudo, Elas Não Querem Ser Mães: Algumas Reflexões Sobre a Escolha Pela Não Maternidade na Atualidade, em parceria com a aluna Thaís Gigek.
À época, as pesquisadoras entrevistaram seis mulheres, entre 30 e 55 anos, que não quiseram ter filhos. Em vez da maternidade, priorizaram outros projetos, como a carreira profissional, por exemplo.
"Nossa sociedade, machista e patriarcal, não consegue enxergar a mulher para além do seu papel de mãe. No entanto, há diferentes possibilidades. O percurso feminino é plural. Outros ideais de vida podem ser configurados. É preciso romper com essa norma social que conecta o feminino à maternidade", afirma Thássia.
A vida sem filhos no exterior
Nos EUA, mulheres sem filhos ganharam termos próprios: "childless" e "childfree". Quem explica a diferença é a psicóloga Kate Kaufmann, autora do livro Você Tem Filhos? — Como As Mulheres Vivem Quando a Resposta É Não (Editora LeYa).
"Childless são as mulheres que queriam ter filhos, mas nunca tiveram. E childfree, aquelas que optaram por não ter", distingue. Kate e o marido, Dan, fazem parte do primeiro grupo. Eles bem que tentaram, mas não conseguiram engravidar.
"Paramos quando os médicos disseram que nosso próximo passo era a fertilização in vitro", confessa. "Para mim, era antinatural e proibitivamente caro". Hoje, o casal cria ovelhas numa comunidade rural em Portland, no Oregon.
Já Karen Malone Wright, fundadora do site theNotMom ("Não Mães", em livre tradução) e organizadora do NotMom Summit ("Encontro de Não Mães"), prefere classificar as mulheres sem filhos em "por escolha" ou "por acaso" ("By choice" ou "by chance", no original).
Segundo o censo de 2014, 47% das americanas entre 15 e 44 anos não tiveram filhos. O site da instituição, fundada em 2012, lista algumas não mães famosas, como a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941), a estilista francesa Coco Chanel (1883-1971), a pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954), a atriz americana Katharine Hepburn (1907-2003), a ex-primeira dama argentina Eva Perón (1919-1952)...
Na edição de 2017 do NotMom Summit, realizado em Cleveland, Ohio, a palestrante convidada foi a psicoterapeuta britânica Jody Day.
Ela é criadora do termo "NoMo" (sigla para No Mothers) e autora do livro Living the Life Unexpected: How to Find Hope, Meaning and a Fulfilling Future Without Children, inédito no Brasil.
Day queria ter filhos, mas, solteira aos 43 anos, depois de dois relacionamentos, se deu conta de que não conseguiria realizar seu sonho.
Hoje, aos 57, mora na Irlanda com seu segundo marido, a mãe e um cachorro. Em 2011, ela cofundou a Gateway Women, grupo de apoio para mulheres que não puderam engravidar. Em 2016, segundo o Instituto de Estatísticas Britânico (ONS, em inglês), 18% das mulheres do Reino Unido não pensavam em ter filhos. Em 1991, esse índice era de 9%.
"Não querer ter filhos não é crime"
No Brasil, já existem iniciativas do tipo, como os grupos on-line Sem Filhos ou Não Nasci Pra Ser Mãe.
Para a roteirista Jaqueline Vargas, a troca de vivências pode trazer muitos benefícios. E pelas mais variadas razões.
Ela enumera algumas: em primeiro lugar, porque fica evidente que você não é a única a não querer ter filhos. Segundo, porque um ambiente de afinidades gera mais segurança e liberdade para se expor sem medo de julgamento. E terceiro porque, ao verbalizar e escutar, temos a possibilidade de ressignificar essa "verdade absoluta" que tem sido imposta às mulheres ao longo da história. "Quanto à culpa, mais do que aliviá-la, a troca pode levar ao entendimento de que não existe culpa", afirma Vargas.
A escritora Thalita Rebouças entendeu que não tinha vocação para ser mãe lá pelos 30 anos.
"Foi uma decisão consciente", afirma a apresentadora do The Voice Kids que, volta e meia, ouve a mesmíssima pergunta: "Você não se arrepende?".
"Acho um tremendo absurdo! Dá vontade de perguntar a quem teve: 'E você, se arrepende?' Optei por não ter e não me arrependo. Por que a gente tem que ter filhos? Já reparou que ninguém cobra isso dos homens?".
Seu talento como escritora infantojuvenil, relata em entrevistas, já foi colocado em dúvida pelo simples fato de não ter filhos. Certa ocasião, alguém deixou escapar: "Está grávida? Já estava na hora!". "Fazer filho é fácil, educar é que são elas!", costuma responder. Ter filho para deixar com babá? De jeito nenhum!
Autora de best-sellers como Tudo Por Um Popstar (2003), Fala Sério, Mãe! (2004) e Ela Disse, Ele Disse (2011), entre outros, Rebouças explica que não queria abrir mão de sua vida noturna, quando gosta de varar a madrugada escrevendo livros e roteiros, para cuidar da prole.
"Não querer ter filhos não é crime. Pelo contrário. É uma decisão difícil. Uma decisão de amor ao mundo, de amor ao próximo e de amor a si próprio".
- Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62144903