Dois anos depois de ter se baseado na Lei Maria da Penha para solicitar medidas protetivas contra o seu agressor, o pedido de Luana Emanuelle foi atendido pelo Supremo Tribunal de Justiça. Na terça-feira, 5, a 6ª Turma do Tribunal decidiu por unanimidade que a legislação voltada à proteção das vítimas de violência doméstica também se aplica a mulheres transexuais e travestis, um entendimento até então inédito e que cria agora precedente a ser aplicado em todos os tribunais de instâncias inferiores do País.
Luana, hoje com 19 anos, conta ao Estadão que "já tinha perdido as esperanças" com o sistema judiciário e até esqueceu a data em que seu recurso seria julgado pelo STJ. "Achei que não ia dar em nada. Larguei de mão e decidi desistir." Foi apenas quando a reportagem entrou em contato com a jovem que ela soube da vitória.
"Fico muito feliz. É uma alegria e uma responsabilidade. Porém uma frustração também de ter passado por toda essa mobilização por algo que deveria ser tão normal", comenta Luana. "Não sei explicar muito bem, porque para mim é algo tão simples, que deveria ter sido solucionado de forma simples também."
O agressor denunciado por Luana em 2020 é o próprio pai, que a espancou após ela ter resistido a uma tentativa de estupro. A agressão foi feita em Juquiá, no interior do Estado de São Paulo, e mesmo com o exame de corpo delito e o flagrante dos policiais que a atenderam, a jovem não conseguiu as medidas protetivas da Lei Maria da Penha - como a proibição de contato presencial ou virtual pelo agressor - por se identificar como mulher trans.
Ela conta que, até hoje, o pai a procura nas redes sociais para ameaçá-la de morte. Alguns parentes também teriam entrado em contato após o Estadão ter revelado o caso, em setembro do ano passado. "Recebi algumas ameaças ainda, algumas mensagens, mas me desliguei totalmente dele. Depois disso, alguns familiares ainda com medo vieram me questionar por eu ter exposto a situação. Mas nenhum deles me estendeu a mão quando eu precisei", desabafa.
Em maio do ano passado, três meses após Luana ter sido agredida, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) negou as medidas protetivas alegando que havia "impossibilidade jurídica de fazer a equiparação 'transexual feminino = mulher'''. Já na visão do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do caso no STJ, havia transfobia por trás da discussão que chegou à corte, além dos recordes "ignominiosos" (vergonhosos) no trato do Brasil com pessoas transexuais.
"Este julgamento versa sobre a vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias", ressaltou o ministro, citando ainda o fato de que o Brasil permanece há 13 anos no topo do ranking de assassinatos contra transexuais e travestis.
Em 30 dias, Luana vai chegar aos 20 anos. Mas mesmo antes disso, ela pretende deixar o pai e as agressões que sofreu no passado. "Comecei tudo de novo, do zero. Essas questões familiares e de quem me machucou tanto, me deu tantos traumas, eu só quero esquecer", desabafa.
Morando em São Paulo e procurando emprego para se manter, ela comemora também uma outra vitória conquistada com muito esforço: o nome social retificado na sua certidão de nascimento, que desde o mês passado a identifica como Luana Emanuelle. "Isso serviu pra me mostrar que eu realmente sou uma pessoa nova."
Comunidade trans espera aumento de dados e diminuição da violência
Com a decisão do STJ abrindo precedente jurídico para os tribunais de instâncias inferiores, a comunidade transexual espera que os dados sobre violência doméstica contra essa população saia da invisibilidade e possa ser devidamente contabilizado.
"Almejávamos muito que essa decisão saísse porque a nossa população está vivenciando essas violências no âmbito doméstico desde sempre, mas elas não são sequer notificadas. Elas já naturalizam tanto que não conseguem nem denunciar", conta Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra). "Agora, a possibilidade de termos esses dados é bem real."
De acordo com o último dossiê divulgado pela Antra, o Brasil teve 140 assassinatos de travestis e transexuais ao longo do ano passado. Depois das vias públicas, o local mais comum dos crimes foi a própria residência das vítimas, onde são assassinadas pelos companheiros, pais, irmãos ou familiares próximos.
"Não trabalhamos com a diminuição da violência, mas com a erradicação. Essa possibilidade agora é bem real, porque um pai, mãe ou irmão já vai ter consciência de que pode ser acionado judicialmente", comenta Keila. "É importante entendermos que grande parcela da população trans não vive no ambiente familiar. As poucas que vivem sofrem violências e os nossos dados estão aí para provar isso."