Pietra, Rute, Naine e Kellen têm algo em comum além de serem mulheres indígenas. Com carreiras acadêmicas e/ou de pesquisadoras em plena ascensão, elas almejam honrar os ancestrais, compartilhar ensinamentos de seus povos de origem e, sobretudo, contribuir para (re)contar a história dos indígenas no Brasil sob outros pontos de vista - os de quem cresceu em aldeias e entendem as lutas na pele.
O ambiente da faculdade, para elas, é mais do que um compromisso ou uma oportunidade: é outro território que, sim, a despeito das dificuldades, também lhes pertence. Confira essas quatro trajetórias de destaque:
Pietra Dolamita (Kowawa Kapukaja)
"Eu sou o sonho dos meus ancestrais", define Pietra Dolamita/Kowawa Kapukaja, indígena da etnia Apurinã oriunda do Médio Purus, no sul do Amazonas. A fala potente expressa não só orgulho, mas gratidão pela construção de uma carreira acadêmica em várias vertentes.
Formada em Direito pelo Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em 2004, ela também é mestra em Antropologia Social pela mesma instituição e em Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul). Atualmente, se dedica ao doutorado sanduíche em Antropologia Social na Universidade Federal Fluminense (UFF) em parceria com a Université Sorbonne Nouvelle - Paris 3.
Ativista, Pietra fez parte da luta pelas ações afirmativas que culminaram na sanção da Lei de Cotas, em 2012. "Nós, indígenas, somos doutores dentro dos nossos territórios, mas para quem vive no 'mundo ocidental' são necessários o que chamamos de 'papéis'. Os diplomas corroboram nossa prática diária de luta e nossas ações numa perspectiva de luta permanente por direitos", pontua.
Para ela, embora a presença indígena nas universidades venha se tornando mais frequente no Brasil e configure um momento histórico, o ambiente acadêmico "é um lugar hostil". "Indígenas e negros têm de enfrentar o tempo todo o racismo estrutural dessas instituições, que ainda estão ancoradas numa visão colonialista em que insistem na nossa não permanência nesse lugar", observa, citando como exemplo a falta de acesso à bolsa de estudos para o doutorado na UFF.
Segundo Pietra, uma mulher indígena sempre vai incomodar se "ela tiver consciência, ética e honra do lugar de pertencimento". "Fui criada para ser o que eu sou, forjada pelo meu povo e por espíritos ancestrais para ser a mulher que sou. É fundamental que os indígenas e os negros levem para as universidades outros pensamentos além daqueles eurocentrados, cristãos e monoteístas que sempre foram postos", diz.
Kowawa Kapukaja atua principalmente nos temas de educação indígena, educação ambiental, questões raciais, ações afirmativas e mulheres indígenas. Ela é cofundadora do Instituto Pupykary do Povo Apurinã e cofundadora da Articulação Brasileira de Indígenas Antropologes (ABIA). Além do doutorado, atualmente desenvolve pesquisa com o povo Tupinambá de Olivença, em Ilhéus (BA).
Rute Anacé
Nascida na reserva indígena Taba dos Anacé, no Ceará, desde menina Rute, hoje com 25 anos, sabia que no futuro seria pesquisadora e concentrou todas as energias e esforços que pôde para realizar o objetivo. . "Aos 17 anos, entrei no bachelarado de Ciências Sociais na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia sabendo o que queria falar, fazer e pesquisar. Para mim, a universidade sempre foi um ambiente estratégico para contrar outro viés da História, um viés epistemológico da luta indígena", afirma.
Determinada, chegou - literalmente - longe. Hoje Rute Anacé vive na Espanha, onde faz doutorado em Ciências Sociais na prestigiada Universidad de Salamanca. A fonte de sua pesquisa é o povo Anacé e sua luta por território, tema que também permeou seu trabalho de conclusão de curso da graduação.
Em sua carreira acadêmica, Rute conta ainda com um mestrado em Antropologia Iberoamericana pela Universidad de Salamanca em 2021 e é mestranda em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB). "O estudo, para mim, é um ato político e uma estratégia de luta”, declara.
"Estar sozinha aqui na Espanha é uma transformação que venho aprendendo a lidar. Acho importante esse distanciamento que a faculdade impõe da convivência com meu povo para enxergar outras percepções no campo acadêmico e antropológico e entender o significado de uma mulher indígena anacé estar aqui", fala Rute.
Ela participa do Movimento Saúde Mental (MSM) desde 2014, quando conheceu o projeto “Juventude Indígena Realizando Sonhos” através do líder indígena Benício Pitaguary. O projeto realizado pelo MSM contribui para o fortalecimento da identidade étnica e estimula a formação acadêmica e profissional de jovens indígenas. "A ajuda deles para estar em Salamanca tem sido muito importante".
Apesar da carreira bem-sucedida que vem construindo, Rute relata preconceitos. "Já ouvi comentários sobre indígenas serem 'selvagens' e vários questionamentos sobre meu grau intelectual. Perguntam, por exemplo, se já estudei determinado autores para ocupar a posição de doutoranda. Há uma dúvida constante sobre a minha capacidade", conta ela que, mesmo com essas dificuldades, não pretende esmorecer e quer se tornar docente para repassar os conhecimentos adquiridos.
Naine Terena
A ativista, educadora, artista e pesquisadora indígena do povo Terena possui um currículo invejável. Não à toa, foi convidada por Fabiano Piuba, Secretário de Formação Cultural, Livro e Leitura do Ministério da Cultura para ser diretora de Educação e Formação Artística do MinC. "Meu plano atual é contribuir com esse campo em reconstrução", diz ela, que nasceu em Cuiabá (MT) e hoje mora em Brasília (DF).
Doutora em educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC-SP) e mestre em Artes pela Universidade de Brasília (UnB), Naine Terena foi curadora da primeira mostra de arte indígena da Pinacoteca do Estado de São Paulo, "Véxoa: Nós Sabemos", e uma das curadoras do festival de arte indígena rec.tyty ao lado do ambientalista Ailton Krenak. "Acho que não tem uma única resposta, mas foi o caminho que encontrei para falar de temas que me chamam a atenção, de maneira a me aproximar das diferentes realidades", responde ela ao ser indagada sobre o que a motivou a trabalhar com educação e arte.
Docente na especialização em Gestão Cultural Contemporânea do Instituto Itaú Cultural e professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Ensino em Contexto Indígena da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), ela acredita que a arte tem o poder de mudar a visão que a sociedade tem dos povos indígenas. "A arte pode criar repertórios, principalmente se estiver junto da educação formal, local onde estamos grande parte do tempo. Essa criação de repertórios ajuda a entender processos históricos e a criar empatia, além de também nos aproximar de nós mesmos, das nossas histórias, das nossas memórias", afirma.
Naime Terena tem dedicado os últimos anos a fazer a produção de conteúdos para reflexão sobre a posição de indígenas e mulheres na sociedade de forma geral. Ela ainda idealizou a plataforma Voro'pi, criada para conectar a arte brasileira com universidades norte-americanas, lançada neste ano.
Kellen Natalice Vilharva (Xamiri Hu’y Rendy)
Nascida em Japorã (MS), a bióloga faz parte da etnia Guarani Kaiowá e viveu na reserva indígena de Jaguapiru, em Dourados. Hoje mora em Campinas (SP), onde faz doutorado no Programa de Pós-Graduação em Clínica Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Sempre gostei das áreas biológicas, desde o Ensino Médio. Me identifiquei com o curso e passei na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. As áreas da Biologia são várias, o que eu gosto e trabalho hoje em dia é a Etnofarmacologia. A pesquisa que venho desenvolvendo é relacionada às plantas medicinais e à medicina tradicional do meu povo Guarani Kaiowá", conta.
Kellen tem experiência na área de limnologia, especialidade da Biologia que estuda as águas interiores (de rios e lagos, por exemplo), com ênfase em análise da qualidade da água. Ela ainda é mestra em Biologia Geral/Bioprospecção, com pesquisa na área de Conhecimento Tradicional Indígena, e é guiada pelo objetivo de levar os saberes ancestrais de seu povo para os corredores acadêmicos. "Pretendo seguir a carreira da docência", diz ela, que já ministrou o curso online "A saúde na perspectiva indígena" pelo SESC. "A proposta foi apresentar uma visão de saúde que não separa a anatomia e a fisiologia da cosmologia, dos conhecimentos, da natureza, do território e do espiritual", relata.