Eleições 2022: intolerância religiosa vai piorar seja qual for o eleito, diz pesquisadora

Para Tayná Louise De Maria, que estuda fundamentalismo cristão na UFRJ, seguidores de religiões afro-brasileiras poderão ser alvos de perseguição depois do pleito

6 out 2022 - 05h40
(atualizado às 07h36)
homem lendo a bíblia
homem lendo a bíblia
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A pesquisadora Tayná Louise De Maria, doutoranda em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita que a intolerância religiosa vai ficar mais forte depois das eleições deste ano.

Para ela, discursos e posturas da campanha do presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL), incentivam a perseguição aos seguidores de religiões afro-brasileiras, como o candomblé e a umbanda.

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Isso porque Bolsonaro tem associado de maneira negativa seu adversário, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a demônios e correntes religiosas de matriz africana.

"A intolerância e o racismo religiosos vão tomar proporções maiores depois das eleições. Os fundamentalistas vão se sentir mais à vontade", diz De Maria, que pesquisa o fundamentalismo cristão no Brasil.

Em agosto, por exemplo, a primeira-dama Michelle Bolsonaro criticou Lula nas redes sociais por um vídeo em que o petista aparece sendo abençoado por mulheres de religiões afro-brasileiras.

"Isso pode, né? Eu falar de Deus não pode, né", escreveu a primeira-dama, em resposta a uma publicação de uma vereadora bolsonarista que falava que Lula "vendeu a alma" para vencer as eleições.

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Bolsonaristas também tem associado a companheira de Lula, a socióloga Rosângela Lula da Silva (conhecida como Janja), às mesmas religiões de matriz africana. O presidente também tem dito que as eleições são uma batalha do "bem contra o mal" — e ele seria o bem.

Nesta quarta-feira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) determinou a retirada das redes sociais de um vídeo que ligava Lula ao satanismo.

Por outro lado, Bolsonaro também foi ligado aos maçons depois de um vídeo de 2017, em que ele aparece em uma loja da maçonaria, viralizar nas redes sociais nesta semana.

Para Tayná Louise De Maria, o petista tem pouco a ganhar com vídeos como esse, e deveria se aproximar de religiosos progressistas que o ajudem a conversar com a parcela evangélica do eleitorado.

Já a campanha de Bolsonaro, diz a pesquisadora, se apoia no fundamentalismo cristão e racismo religioso para tentar vencer as eleições no segundo turno.

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Confira a entrevista abaixo:

BBC News Brasil - Por que cristãos, principalmente evangélicos, apoiam pautas conservadoras como as defendidas por Bolsonaro?

Tayná Louise De Maria - O bolsonarismo segue uma pauta que não está só no Brasil, mas em vários países cristãos, como os Estados Unidos e Itália, que recentemente elegeu uma política de extrema-direita (Giorgia Meloni, cujo partido Irmãos da Itália ganhou as eleições para formar um governo).

Ele se utiliza de um discurso que chamo de neofundamentalismo religioso cristão, muito influenciado pelos Estados Unidos.

A pesquisadora Tayná Louise De Maria pesquisa fundamentalismo cristão no Brasil na UFRJ
Foto: Arquivo Pessoal / BBC News Brasil

É preciso voltar um pouco no tempo para entender isso.

Até a Segunda Guerra Mundial, o fundamentalismo cristão nos Estados Unidos atacava principalmente a ciência e o ensino da teoria de Darwin nas escolas, porque enxergava esses elementos como uma ameaça ao cristianismo.

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A partir da década de 1960, com a influência da Guerra Fria, ele muda sua pauta para um combate ao comunismo, que vira o principal inimigo.

Nessa época, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou várias leis criadas por cristãos conservadores, como a lei da sodomia que proibia o casamento gay e a legislação Jim Crow, que era racista e segregracionista. Todas essas mudanças foram associadas ao comunismo.

Os fundamentalistas cristãos passam a ver a política como um campo de batalha, porque as leis que sustentavam a religião estavam sendo revogadas. Eles começaram a disputar e ocupar as casas legislativas.

Eu coloco esse ponto como o início da bancada da Bíblia.

BBC News Brasil - Como isso influenciou o Brasil?

De Maria - É preciso lembrar que o golpe militar de 1964 já teve grande apoio de parte do catolicismo e dos evangélicos.

No período da redemocratização, essa influência continuou no Brasil e em outros países cristãos.

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A força do bolsonarismo e do neofundamentalismo religioso está na pauta de costumes.

Eles defendem os costumes e a cultura do cristianismo em oposição ao que eles acreditam ser a ameaça comunista. Para eles, o comunismo se revela de muitas maneiras.

Tudo é chamado de comunismo: religiões afro-brasileiras, combate ao racismo e legalização do aborto, por exemplo. Para os fundamentalistas cristãos, até uma mulher que faz um aborto para não morrer é uma comunista.

BBC News Brasil - Como essa pauta encontra ressonância nas ideias de Olavo de Carvalho?

De Maria - O fundamentalismo cristão precisa sempre ter um inimigo. Isso vai da ciência aos imigrantes, por exemplo.

Para o falecido Olavo de Carvalho, o Ocidente e o cristianismo estão ameaçados pela ideologia de esquerda e por outras religiões.

O Ocidente é uma ideia que tem o cristianismo como um de seus pilares. Então, na narrativa de Olavo e dos fundamentalistas, esses pilares precisam ser defendidos.

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Mas essa narrativa se esquece que o progressismo e a própria ideia de esquerda também nasceram no Ocidente, também nasceram no berço do cristianismo e se utilizam de valores cristãos.

BBC News Brasil - Pastores evangélicos famosos, como Silas Malafaia e Edir Macedo, também apoiaram governos do PT, mas essa pauta conservadora não tinha tanta força. Bolsonaro tirou o fundamentalismo do armário?

De Maria - O fundamentalismo cristão é camaleônico. Ele se adapta às circunstâncias, está sempre ao lado do poder.

Talvez alguns pares não gostem do que vou falar, mas acredito que o bolsonarismo, principalmente sua face fundamentalista cristã, também é fruto do antipetismo.

Os principais líderes religiosos que chamo de fundamentalistas, como Silas Malafaia e Edir Macedo, romperam com o PT depois dos escândalos de corrupção envolvendo o partido.

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Bolsonaro é apoiado por pastores como Silas Malafaia
Foto: EPA / BBC News Brasil

Isso incentivou muitos religiosos a rever suas posições e relações com políticos.

Mas Bolsonaro não é só apoiado por pastores evangélicos, mas por religiosos que também são empresários.

A intelectualidade bolsonarista é cristã, mas, antes de tudo, também é liberal, faz parte do empresariado, do agronegócio. Essas pessoas não viam tantos benefícios nos governos do PT, e agora se aproveitam da religião em sua narrativa eleitoral.

BBC News Brasil - O Brasil vai sair mais intolerante com as religiões depois do segundo turno?

De Maria - Jair Bolsonaro incentiva a intolerância religiosa.

Ele pode não cometer intolerância, mas algumas de suas falas, alguns discursos, incentivam a intolerância e deixam muito à vontade quem quer se comportar dessa forma.

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A intolerância e o racismo religiosos vão tomar proporções maiores depois das eleições, seja qual for o resultado. Os fundamentalistas vão se sentir mais à vontade.

BBC News Brasil - Você acredita que Lula e a esquerda estão errando na abordagem com os evangélicos?

De Maria - Para vencer, Lula e a esquerda precisam urgentemente renovar sua base e conversar com cristãos liberais. Não digo liberais no sentido econômico, mas evangélicos progressistas que não veem a Bíblia de maneira literal.

São esses religiosos liberais que vão ajudar a esquerda a convencer os cristãos conservadores de que há outro caminho possível. A intelectualidade de esquerda está muito distante desse religioso.

A esquerda diz que os governos do PT beneficiaram muito a população pobre, mas muitos desses benefícios são relacionados ao poder de compra.

O que eles não entendem é que o pobre também é cristão e não está muito a fim de perder aquilo que dá sentido à vida dele. O cristão não quer sentir que seus valores estão ameaçados. E o bolsonarismo pintou Lula como uma ameaça a esses valores.

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Lula tem sido associado negativamente a religiões de matriz africana
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Brasil - Na segunda-feira, repercutiu bastante um vídeo de 2017 em que Bolsonaro fez campanha em uma loja maçônica. Como o evangélico enxerga essa imagem?

De Maria - O primeiro ponto é que existem muitos pastores maçons, principalmente em igrejas evangélicas tradicionais, como a batista e presbiteriana.

A imagem de Bolsonaro ligado à maçonaria talvez tenha um impacto negativo entre os pentecostais e neopentecostais.

É uma investida do PT de querer manchar o nome de Bolsonaro, uma vez que o Bolsonaro coloca Lula como anti-cristão. Essa ala progressista percebeu que a maçonaria é conhecida por ser uma coisa anti-cristã.

É claro que vai movimentar alguns setores, mas não acho que terá um efeito muito grande.

BBC News Brasil - Por quê?

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De Maria - Bolsonaro está convivendo e falando a língua desses religiosos há muito tempo. O PT não vai conseguir mudar isso em duas semanas. Não vai virar o voto evangélico perpetuando esse tipo de vídeo.

Volto a dizer: para vencer, Lula precisa chamar para conversar líderes religiosos progressistas. São eles que podem mudar a visão dos evangélicos conservadores.

BBC News Brasil - Como o racismo religioso está sendo usado nessa eleição?

De Maria - Esse racismo religioso está muito presente no neofundamentalismo cristão, mas de maneira velada, difícil de identificar.

Lula é associado ao comunismo e às religiões de matriz africana, que são vistas como algo maléfico e que ameaça o cristianismo.

Em muitas igrejas, ou em revistas evangélicas, o mal é sempre representado pelas cores escuras.

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Isso tem a ver com uma interpretação de uma história da Bíblia, o mito de Cam.

Essa história coloca a África como uma região amaldiçoada por causa de Cam, um dos filhos de Noé, que foi amaldiçoado por ver o pai nu. Depois, ele foi enviado à África. Esse mito foi utilizado pelo cristianismo para justificar a escravidão e até hoje tem muita influência na sociedade.

O resultado dessa postura têm se revelado nos últimos anos, com uma série de ataques a terreiros de candomblé e umbanda.

Camisetas estampadas com imagens de Lula e Bolsonaro
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Brasil - O quanto essa visão incentivada pelo bolsonarismo influencia na vida dos seguidores das religiões afro-brasileiras?

De Maria - Afeta muito o cotidiano dos religiosos. Afeta do momento em que a pessoa coloca suas roupas religiosas até quando anda na rua.

É viver sempre ameaçado porque não se sabe o que pode acontecer nas ruas.

Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, já ocorreram vários episódios de violência, desde criança atacada por estar vestida de branco até terreiros de candomblé invadidos e destruídos.

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A própria democracia se coloca em risco quando uma pessoa não consegue praticar sua religião.

BBC News Brasil - Como os evangélicos lidam com posturas de Bolsonaro que contrariam valores cristãos, como apoio à tortura e armamento da população?

De Maria - Vou fundamentar minha resposta citando uma série que assisti na Netflix chamada The Family, que conta como fundamentalistas religiosos chegaram ao poder nos Estados Unidos.

Esses fundamentalistas acreditam que um político 'escolhido por Deus' é humano e pode errar. Então, sempre há posturas que são deixadas debaixo do tapete porque os benefícios são considerados maiores do que os erros.

Há também a construção de narrativas para desvirtuar a história. Por exemplo, alguns dizem que Bolsonaro nunca atrasou as vacinas contra a covid-19, ou que as vacinas não funcionam, então não houve problemas nesse atraso.

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Mesmo que as pessoas desconfiem dessas narrativas em um primeiro momento, depois são convencidas de que existe um compromisso maior de Bolsonaro e que isso precisa prevalecer.

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