Viola Davis abre Finding Me com uma dose dupla de palavrões - e um anúncio de que seu livro de memórias não contará tudo sobre Hollywood. Em vez disso, ela pretende mergulhar em seu trauma de infância.
A introspecção que se segue chega ao fundo da dor profunda de Davis e como ela moldou uma das melhores atrizes de uma geração. Quando a vencedora do Oscar, Emmy e Tony cita o nome de Will Smith nas páginas de abertura, para falar de uma conversa sincera que compartilharam sobre o modo como foram criados, essa é uma das poucas referências ao estrelato que o livro traz, pelo menos até os capítulos finais.
Davis está mais interessada em enquadrar sua carreira no contexto do racismo, abuso geracional e agressão sexual que ela superou enquanto crescia "po" - "Esse é um nível inferior ao pobre", ela esclarece - na cidade de Central Falls, Rhode Island.
Suas memórias sobre o bullying escolar que sofreu são perturbadoras. Assim como as descrições de suas casas em ruínas, incluindo um apartamento infestado de ratos ao qual ela se refere como "armadilha da morte". Os amantes de animais de estimação podem ter dificuldade em suportar descrições detalhadas de crueldade com animais que Davis se lembra de testemunhar. Em uma revelação angustiante, ela diz que seu irmão abusou sexualmente dela e de suas irmãs quando eram jovens.
Abuso doméstico
Mas Davis se concentra na relação volátil entre sua mãe empática e seu pai violento e alcoólatra. Com brutal franqueza, ela canaliza o terror implacável de viver em uma casa com abuso doméstico: "Não há páginas suficientes para mencionar as brigas, o constante ser acordada no meio da noite ou voltar para casa para as raivas do meu pai e rezar para que ele não perdesse o controle a ponto de matar minha mãe".
Eventualmente, porém, ocorre a transformação de seu pai em uma alma mais gentil e um parceiro amoroso. Mais tarde, sua lembrança de sua morte é devastadora. Com pinceladas finas, ela pinta um retrato complicado de um homem complicado.
Davis reconhece que acabou se tornando uma atriz como uma espécie de mecanismo de enfrentamento. "O processo e a arte de viver um ser humano completamente diferente de você era o equivalente a ser de outro mundo", explica. "Também tem o poder de curar o que foi quebrado. Tudo o que estava dentro de mim que eu não consegui resolver na minha vida, eu poderia canalizar isso para o meu trabalho e ninguém saberia." Se você conhece as performances de Davis, você entende o que ela diz.
Quando Davis se lembra de suas primeiras lutas como atriz - trabalhando como diarista e operadora de telemarketing para sobreviver, enfrentando várias doenças sem seguro de saúde -, sua força profissional se torna ainda mais admirável. E isso sem mencionar o racismo, o sexismo e o colorismo da indústria, com os quais Davis lida há muito tempo.
Ela escreve que a Juilliard School e sua visão de mundo centrada no branco sufocaram seus instintos artísticos antes que uma viagem reveladora a Gâmbia a ajudasse a redescobrir sua voz. Ela também cita os obstáculos que enfrentou por causa de seu peso e tom de pele, observando que "quase todos os papéis para os quais fiz o teste eram mães viciadas em drogas". É irritante e, infelizmente, nada surpreendente.
Embora Davis não tenha vergonha de acusar a indústria em geral por seus vieses sistêmicos, ela é mais seletiva ao compartilhar seus pensamentos sobre projetos específicos. Quando ela abre a cortina, ela vai além das histórias fofas de bastidores.
Discutindo sua audição para Vera em Seven Guitars, a peça de August Wilson com a qual estreou na Broadway, ela conecta a experiência ao seu passado conturbado. "Foi uma bela cena de mágoa, dor, saudade, amor", ela escreve. "Fui eu. Não exigiu muito explorar essa parte de mim mesma." Davis também oferece uma visão fascinante de suas experiências em Dúvida, Um Limite entre Nós, How to Get Away With Murder e Histórias Cruzadas, um filme que ela questiona criativamente, ao mesmo tempo em que expressa admiração por seus colaboradores.
No momento em que Davis chega à narrativa de sua estadia na vila italiana de George Clooney, a experiência caricatural luxuosa não parece uma fantasia fora de alcance, mas uma pausa merecida para alguém cujo caminho para a prosperidade foi pavimentado entre muitas armadilhas. O doce namoro entre Davis e seu marido, o ator Julius Tennon, também traz uma lufada de ar fresco, assim como a ode de Davis à filha, Genesis, que o casal adotou em 2011.
Finding Me tem algumas pontas soltas, prosa empolada e anedotas supérfluas, mas a jornada de Davis supera esses detalhes. Amarrando a dor do passado ao presente, ela escreve: "Não tenho mais vergonha de mim. Sou dona de tudo o que já aconteceu comigo. As partes que eram fonte de vergonha são, na verdade, meu combustível de guerreira". Ela está certa: mesmo quando parece que Davis deu tudo de si em uma interpretação, no palco ou na tela, ela sempre parece ter algo a mais ainda sobrando. (TRADUÇÃO DE JOÃO LUIZ SAMPAIO)