"Estava rasgando, queimava e ardia", lembra vítima de violência obstétrica que perdeu bebê

Grávida sofreu uma série de abusos e negligências de médicas obstetras, que levaram à perda da filha Aurora no dia do parto

17 ago 2022 - 05h00
Ser acompanhada, respeitada, não sofrer violência obstétrica e ter acesso a atendimento digno estão entre os direitos das parturientes
Ser acompanhada, respeitada, não sofrer violência obstétrica e ter acesso a atendimento digno estão entre os direitos das parturientes
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O que era para ser apenas uma consulta de acompanhamento do pré-natal da advogada e assistente social V. F.* se tornou um infeliz incidente que abriria caminho para uma série de abusos e negligências que ela jamais vai esquecer. Ela chegava à reta final da gravidez da pequena Aurora e, durante o exame de toque, o primeiro abuso aconteceu.

"Deitei na maca, e quando ela [obstetra] começou, eu comecei a me contorcer, muita dor. Eu aguento dor, mas a sensação é de que estava rasgando. Queimava e ardia. Meus olhos lacrimejaram", relata, em entrevista ao Terra

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Quando o exame acabou, a médica disse que tinha apenas "introduzido os dedos", conforme relembra a vítima. Na memória ainda está a imagem dos dedos ensanguentados da obstetra, que marcavam a primeira vez que sangrava durante a gestação. "Vá se acostumando, é assim mesmo", disse a obstetra.

Abalada, ela pediu um absorvente, mas não foi atendida. O jeito foi sair do consultório com alguns pedaços de papel higiênico na calcinha, chorando de dor. Antes, V. ouviu da profissional que estava com três centímetros de dilatação e que a previsão para entrar em trabalho de parto era, no máximo, em dois dias. A obstetra sairia de férias naquela semana.

"Quando eu ia abrir a boca para pedir para ela parar porque eu não estava aguentando, ela parou. Eu perguntei o que foi que ela havia feito, e que tinha usado, e disse: 'Estou me sentindo estuprada'", relatou vítima de violência obstétrica sobre exame de toque na reta final da gravidez. 

Já em casa, V. contou o acontecido a uma amiga, que é doula, e perguntou se era um exame normal. Foi quando ela soube que, no momento do toque, a médica fez um procedimento para adiantar o parto sem a sua permissão: o descolamento das membranas.

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"Fiquei muito tensa, não sabia o que fazer", lembra.

A vítima acredita que a obstetra fez a manobra sem seu consentimento para conseguir participar do parto antes de sair de férias. "Acho que ela ficou constrangida para me passar para outra médica", conclui. 

Violência que tem nome 

O que a advogada V. F. viveu tem nome: violência obstétrica. E é definida pelo médico obstetra Braulio Zorzella como o extremo oposto do parto humanizado. O profissional é representante da Rede de Humanização do Parto e Nascimento (ReHuNa) e ativista dos direitos da mulher gestante.

O termo foi cunhado em 2010, durante uma conferência na Venezuela, e ajudou a nomear o contrário do que seria a melhor experiência possível para a mulher durante a gestação e o parto.

"Desde que eu me formei, talvez eu tenha visto mais casos com violência obstétrica do que sem", avalia o médico, que estabelece um padrão: os casos mais frequentes desse tipo de violência são o uso da Manobra de Kristeller, episiotomia e uso da ocitocina. 

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Os procedimentos são adotados para apressar o parto, seja empurrando a barriga em uma manobra obsoleta, seja cortando o períneo desnecessariamente ou usando um hormônio sintético para diminuir o tempo de duração do nascimento do bebê. Diferentemente disso, o parto humanizado, defendido por Zorzella, se sustenta em três pilares indispensáveis.

"O primeiro, e o principal, é a pessoa que está sendo atendida, no caso, a gestante. Ela é a principal pessoa a ser ouvida, no que ela quer e no que ela deseja; depois vêm as evidências científicas e, também, o profissional que está atendendo", explica.

Contrações ignoradas

"Ser ouvida" não foi uma realidade para V. F., submetida não só a uma consulta invasiva. Na noite em que entrou em trabalho de parto, poucos dias após o exame de toque, as médicas que a atenderam em um hospital particular não acreditaram que ela estava tendo contrações. Acreditaram, ao invés disso, que se tratava de cálculo renal. Mas as médicas também se recusaram a fazer exames para confirmar.

"Não quiseram se incomodar", acusa a vítima, que foi medicada e colocada em observação. "Morrendo de dor", ela define. 

Por volta da meia-noite, uma escuta dos batimentos cardíacos de Aurora constatou que tudo estava bem e as profissionais foram para o repouso. V. ainda sentia dores, mas lembra que pensava ser normal e fazia parte do processo de parto.

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"Eu gritava de dor, achava que ia desmaiar", acrescenta.. 

Já era 4h da madrugada quando uma nova escuta foi realizada. Desta vez, no entanto, os batimentos cardíacos da bebê estavam bem distantes. Por um momento, ela chegou a pensar que o equipamento estava mal posicionado. Foi então que sua barriga contraiu de uma forma agressiva, parecendo um "maracujá murcho", como explica.

A médica, então, falou: "Isso, sim, é uma contração". "Quer dizer, até ali, tudo o que eu estava passando não era contração. O tempo elas estavam negando que eu estava em trabalho de parto. Elas não aceitavam que eu estava em trabalho de parto, não sei o porquê", desabafa a vítima. 

Bebê nasceu sem vida

Por tudo o que passou até ali, V. não imaginava que o pior estava por vir. A bolsa precisou ser estourada, devido à urgência.

"Eu não vi, mas quando estourou a bolsa, meu companheiro estava do lado e quase caiu, porque saiu um mecônio [primeiras fezes do bebê]", relembra, em prantos. 

Ela foi, então, encaminhada para o centro cirúrgico, onde passou por uma cesária de emergência. Aurora nasceu sem vida. O som distante que as médicas haviam escutado eram, na verdade, a placenta fazendo o movimento de expulsão da bebê.

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"Daquele período de meia-noite até às 4h, em algum momento faltou oxigênio, e ela teve anoxia grave", relembra a mãe.

A equipe passou meia hora tentando reanimá-la, mas não conseguiu.

"Só quero Justiça"

Um tempo depois da grande perda, V. decidiu processar o hospital, já que foi desacreditada pela equipe no momento em que mais precisou de atenção. A desumanização de seu parto tirou a vida de Aurora, mudando completamente os planos da vítima e de seu companheiro.

A violência obstétrica não é tipificada como infração penal pela legislação brasileira, então, V. pede indenização por danos morais, materiais e psicológicos ao hospital. Ela é representada pela advogada Ruth Rodrigues, que também é presidente do coletivo Nascer Direito, que auxilia vítimas de violência obstétrica.

A advogada explica que, mesmo sem legislação específica, é possível tipificar o crime quando ocorrer.

"A violência pode ser considerada crime, porque nós já temos tipos penais que enquadram como crime, como a lesão corporal", explica.

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O mesmo aconteceu no caso da modelo Shantal Verdelho, que expôs a violência que sofreu durante o parto de seu primeiro bebê, em 2021. No caso dela, ofendida verbalmente pelo médico obstetra Renato Kalil, é possível responsabilizá-lo judicialmente pelo acontecido. A Polícia Civil do Rio de Janeiro pode indiciá-lo por lesão corporal e violência psicológica, por exemplo.

"A gente não precisa de uma lei que diga que violência obstétrica é crime. A gente precisa que os operadores do Direito – Ministério Público, Defensoria Pública, procuradores, delegados – entendam que essas condutas durante o parto não são adequadas", defende a advogada Ruth Rodrigues.

Mesmo assim, ela admite que uma tipificação ajudaria a informar e educar as mulheres sobre seus direitos e, aos médicos, seus deveres e limites durante o acompanhamento às gestantes. "Não sou contra, sou a favor. Mas acho que não podemos depender dela para agir. Nós já temos legislação o suficiente para defender essas mulheres", argumenta Ruth. 

O que o Brasil faz sobre isso?

O Ministério da Saúde não detalhou o que faz para inibir casos de violência obstétrica no Brasil, mas destaca a garantia da atenção à saúde obstétrica e neonatal como um dos pilares da Rede de Atenção Materna e Infantil (Rami), instituída pela Portaria GM/MS nº 715, de 4 de abril de 2022, e pela Portaria GM/MS nº 2.228, de 1º de julho de 2022. 

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"A Rami consiste numa rede de cuidados que visa assegurar à mulher o direito à atenção humanizada e segura ao planejamento familiar, à gravidez, à perda gestacional, ao parto e ao puerpério, bem como à criança o direito ao nascimento seguro, ao crescimento e ao desenvolvimento saudáveis. A rede tem como premissa a compreensão de que a segurança e a qualidade são pilares inerentes à humanização e à integralidade do cuidado", informou o ministério, por meio de nota.

O Terra também procurou o Conselho Federal de Medicina (CFM), tanto por e-mail quanto por telefone, mas até a última publicação dessa reportagem, o órgão não indicou um profissional da área para explicar como o CFM inibe ou pune casos de violência obstétrica. O espaço segue aberto.

*Com edição de Estela Marques. 

Fonte: Redação Terra
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