A entrada de pessoas negras em cargos públicos vai além da disposição de cotas e está diretamente ligada a questões sociais, como a estrutura da desigualdade no país, explica a professora, pesquisadora e Mestre em Sociologia e Direito, Tatiana Emília Dias Gomes. Primeira professora efetiva na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, em 129 anos, Tatiana falou à República.org no ebook "Onde estão os negros no setor público?" sobre como o “racismo por interesse”, conceito estudado pela psicóloga e ativista brasileira, diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), Maria Aparecida da Silva Bento, prejudica a entrada de pessoas negras em cargos de liderança no serviço público e como tornar o setor público de fato mais plural e diverso. No Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha há muito o que refletir: os dados da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) mostram que em 2018 os negros ocupavam 30% dos cargos comissionados públicos, mas dentro desse grupo as mulheres negras tem representação menor que 15%.
Além disso, representação política feminina negra ainda é muito baixa no país, a diferença salarial entre um homem branco e uma mulher negra, com nível de formação igual, é maior que 100% (dados do Insper, publicados em 2020)
No e-book feito pela República.Org, Tatiana e outras especalistas analisam o estudo e fazem uma provocação inicial sobre a presença de pessoas negras no setor público, uma maneira de reforçar a urgência do debate, evidenciar os dados existentes, apresentar medidas e o mais importante, mostrar que vidas negras importam e o combate ao racismo precisa começar por dentro do Estado.
As universidades federais e estaduais foram as primeiras instituições públicas a aplicar políticas afirmativas para o ingresso de pessoas negras. Como você avalia esse avanço?
Tatiana Dias Gomes: As políticas afirmativas passaram por um avanço significativo nos últimos anos e no ensino superior, mais especificamente no corpo discente, esse quadro foi transformado lentamente. Ainda não é uma mudança radical, mas é muito diferente da época em que eu era estudante de graduação, onde havia uma presença muito maior de pessoas brancas, classe média/alta. Mas mesmo hoje, estando em uma universidade federal e numa estadual, acho que tem diferenças.
Nas universidades estaduais, o corpo discente sempre foi mais negro. Sobretudo as que estão no interior. Elas concentram os cursos de licenciatura, mas mesmo nos cursos de bacharelado, hoje, percebemos uma presença maior de pessoas negras e proporcionalmente maior do que nas universidades federais, entre elas a da Bahia.
No corpo docente, eu sinto que nas universidades estaduais têm uma presença maior de professoras negras. E aí talvez, pela coisa de estar mais disseminado no interior, não tão na capital. Tanto que quando tomei posse na UFBA, na Faculdade de Direito, houve certa repercussão pública, porque fui a primeira professora negra em 129 anos de existência da faculdade a ocupar um cargo efetivo. Quando ingressei na Universidade Estadual da Bahia (Uneb), isso não causou tanta repercussão porque já haviam outras professoras negras. O corpo docente da Faculdade de Direito, deve ter 130 professores efetivos e um total de sete professores negros: seis homens e uma mulher.
Como essa falta de representatividade ecoa no dia a dia da universidade?
Tatiana: No caso da UFBA a gente começou a articular uma movimentação a partir da reunião de estudantes, professores e servidores técnicos, todos negros e negras, para pautar essa discussão sobre racismo institucional e as políticas de ações afirmativas também para o corpo docente, servidores técnicos e administrativos. Esse debate surgiu muito a partir de um programa de pesquisa que faço parte “Direitos e Relações Raciais”, lotado na Faculdade de Direito, e o Coletivo Luiza Bairros. De alguma forma, fomos tentando sensibilizar e também constranger a instituição a aplicar a lei que introduz também a política de cotas para o serviço público.
E como tem sido esse trabalho que provoca uma reconstrução das estruturas da faculdade?
Tatiana: Tem sido muito difícil fazer esse debate porque vamos encontrando alguns desafios e resistências, negativas institucionais. Começa pela interpretação restritiva da lei. Lembro que durante muito tempo um debate que a gente tentava fazer era aplicação do quantitativo definido pela lei a partir do número total de vagas e não por cadeiras específicas. Então se um concurso tem 100 vagas, temos que aplicar o 20% de cota sobre essas 100 vagas, porque dificilmente a gente vai encontrar três vagas para uma mesma cadeira, para aplicar os 20%. Concurso público sempre foi um artigo escasso, e agora com restrições orçamentárias, é um artigo raro. É mais um elemento que dificulta o acesso de pessoas negras à instituições públicas.
Você contou que teve que levantar essa pauta quando já estava dentro da universidade. Tendo sido a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira efetiva no curso de Direito, como foi o seu ingresso?
Tatiana: Ingressei a partir de um concurso público realizado em 2015. Foram 17 vagas abertas para a Faculdade de Direito, mas a lei de cotas só foi aplicada para uma das cadeiras. Então nesse processo nós perdemos várias vagas. Eu não entrei pela política de cotas porque minha cadeira não foi contabilizada nesse cálculo. Depois começamos a problematizar esse processo. Isso é Brasil afora, não é só na UFBA. Lá encontramos formas para debater, mas tem instituição que nem isso.
A interpretação das políticas afirmativas então ainda é uma questão?
Tatiana: Sim. Considerando algo que está em outra lei, a que trata do ingresso de estudantes nos cursos, há outro debate. Ela fala que o percentual considerado para o cálculo de cota é baseado na presença do povo negro daquela unidade federativa. Na Bahia, por exemplo, temos cerca de 73% da população formada por pessoas negras, então a aplicação seria de 73% das vagas destinadas à estas pessoas, e não só 20%. Tentamos fazer esse debate, chegamos a diminuir e chegar num denominador de 50%. Chegamos a aprovar essa deliberação na congregação da Faculdade de Direito, mas ela foi refutada no âmbito do Conselho Universitário da UFBA.
O que houve?
Tatiana: Foi um debate muito difícil porque as pessoas não se admitem racistas, sobretudo racistas por interesse, que é esse conceito pesquisado pela Maria Aparecida Silva Bento. O debate sobre racismo está muito pautado pela repulsa, do ódio interpessoal, do barrar o acesso, mas o racismo por interesse se manifesta independente da vontade das pessoas, porque ele está ligado à manutenção de privilégios, de fazer mudanças em quem de fato exerce o poder. Está entranhado nas instituições, para limitar o acesso das pessoas negras.
Quando as pessoas me perguntam ‘por que os negros tem dificuldade em acessar o serviço público?’, eu inverto a questão: Por que as instituições têm dificuldades em dar acesso às pessoas negras?
Mesmo a pessoa garantindo as condições de estar na disputa pela vaga, ela vai encontrar uma série de bloqueios. Isso tem a ver um pouco com essa racionalidade instaurada nas instituições. Para disputar uma vaga pública você precisa de anos de estudo, acesso à determinados conhecimentos. Num país onde 100 milhões de pessoas vivem com R$ 413 por mês, isso é impensável. Já excluímos essas pessoas logo na largada. Então só consegue acessar uma universidade pública, um cargo público, aqueles que têm condições de pensar em algo para além da existência imediata, do dia seguinte. Pesquisei esses dias, tem taxa para concurso que custa R$ 360. Isso num país onde 100 milhões de pessoas recebem R$ 413 por mês.
Então a falta de representatividade está diretamente ligada aos problemas sociais que temos no país?
Tatiana: Com certeza. Nas universidades públicas, por exemplo, ainda que uma pessoa tenha conseguido galgar espaços como a graduação ou pós, é necessário lembrar que esse estudante negro, tradicionalmente, também foi trabalhador. Então ele não tem horas ou dias liberados para os estudos, ele divide em dupla ou tripla jornada. O tempo que ele tem para garantir uma formação acadêmica plena, com mestrado, doutorado e pós-doutorado, não serão os mesmos que geralmente os brancos, classe média ou alta precisam, com uma jornada única. Então o professor e professora negra ingressam com sua formação incompleta nestes espaços. E isso impacta na corrida destes profissionais por cargos maiores, porque eles vão disputar editais com outros colegas que já concluíram os estudos. Tem um conjunto de mecanismos, formas e engrenagens para restringir que os profissionais atuem com plenas possibilidades. O que é meu caso, inclusive, e de outros colegas negros que estão nessa posição, num cargo público.
E quais são os caminhos possíveis para de fato permitir esse acesso justo das pessoas negras no funcionalismo público?
Tatiana: Acho que organizar os concursos públicos, na administração superior, para que as vagas disponíveis não ficassem isoladas e fosse possível aplicar uma cota mais justa. Tentar, ao máximo, realizar a abertura de editais únicos. Acho que aumentar a renda das pessoas também influencia na ponta. O acesso à renda, trabalho, saúde, educação, terra, a água. O acesso ao serviço público não está desconectado de tudo isso.
Eu, por exemplo, consegui acessar educação, ainda que com todas as precariedades e estas políticas públicas me deram condições para disputar uma vaga no serviço público. Mas quantas não tiveram por não encontrar um meio razoavelmente acessível? Quando as pessoas vinham me perguntar sobre a posse, elas achavam que eu estava orgulhosa, mas eu estava envergonhada. Muitas vezes eu não conseguia nem falar porque estou numa unidade que tem 129 anos de existência e nunca teve outra professora negra. Tenho colegas lá que o bisavô era professor da universidade. Tem uma família que o bisavô, o avô, pai e filho ocuparam uma cadeira na universidade. Pra mim isso é motivo de indignação. Precisamos desfazer essas engrenagens e permitir o acesso de pessoas pretas.