“Minha eleição é um respiro”. É assim que Erika Hilton avalia os resultados do último domingo (3), quando São Paulo elegeu, pela primeira vez, uma mulher transexual à Câmara dos Deputados. Aos 29 anos, Erika foi a nona mais votada pelo estado e, assim como na expressiva marca de sua eleição à Câmara dos Vereadores em 2020 – quando ela foi a mulher mais votada da cidade –, acredita ter feito história.
Em entrevista exclusiva ao Terra NÓS, Erika conta que a vida nem sempre lhe foi gentil. Na verdade, diz ela, foi necessário muita luta para que os louros começassem a ser colhidos. Como 90% das mulheres transexuais brasileiras, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Erika teve a prostituição como forma de sobrevivência após ter sido expulsa de casa aos 15 anos.
“Minha mãe foi manipulada pelo fanatismo religioso, viveu uma lavagem cerebral. Ainda assim, ela nunca me boicotou. O discurso fundamentalista fantasiado de cristão adentrou minha casa, e eu fui expulsa”, conta. De família evangélica, precisou frequentar a igreja na tentativa de “ser curada”. Como não há cura para o que não é doença, Erika continuou sendo a mulher que sempre sentiu ser, e foi abandonada para viver nas esquinas. “Vivi a prostituição compulsória, o que é comum a mulheres trans num país violento e transfóbico como o Brasil”.
Foi na desumanização das ruas que Erika Hilton compreendeu a prática da transfobia –a violência e a subjugação às quais os corpos transexuais são submetidos. Compreendeu a realidade social ao senti-la na própria pele.
“Entendi muito rápido que aquilo não era natural. Que era um projeto de desumanização, de empobrecimento e vulnerabilização dos nossos corpos. Era doloroso demais estar na rua, jovem, sozinha, e tendo que lidar com todos os dilemas que a noite impunha ao meu corpo. Normalizava a violência porque achava que era a única saída.”
Acolhimento e transformação
O amor da mãe, entretanto, não se esvaiu com o tempo. Sozinha, a mãe de Erika percebeu que não havia nada de errado com a filha e começou a procurá-la. Erika Hilton voltou para casa com uma vivência dolorosa e muita vontade de transformar a dor em luta.
Aos 21 anos, a jovem paulistana recebeu todo apoio da mãe para voltar a estudar – ela havia abandonado a escola quando saiu de casa. Concluiu, então, o ensino médio pelo EJA (Educação de Jovens e Adultos), fez a prova do Enem e começou a cursar pedagogia na Universidade Federal de São Carlos, no interior do estado. Foi quando teve o primeiro contato com os movimentos estudantis, que resultaram em sua politização.
“Conheci a militância e passei a fazer parte dela. Eu queria transformar a fome, o abandono, o desespero e a ausência de oportunidades a pessoas transexuais em algum propósito. Eu saí das ruas, da prostituição, e cheguei ao Congresso. Não fui a única a passar por tudo isso. Estava longe de ser. Precisava lutar por políticas que nos acolhessem”.
A primeira ação expressiva de Erika Hilton foi a luta para que uma empresa de ônibus imprimisse seu nome social na passagem. A companhia havia recusado o pedido, mas a jovem estudante não aceitou mais uma negativa. Levantou a voz e conseguiu o que, tempo depois, se tornou direito. Com a repercussão da militância, foi convidada pelo PSOL para, em 2016, se candidatar a vereadora em Itu, no interior de São Paulo.
Não foi eleita, mas encabeçou uma candidatura coletiva para a Assembleia Legislativa de São Paulo em 2018. A Bancada Ativista conseguiu quase 150 mil votos e garantiu uma vaga na Alesp. Nove nomes compunham o grupo, e Erika foi um dos que mais se destacaram. Ela teve tanta relevância que, dois anos depois, foi a vereadora mais votada da capital paulista.
Da vereança à Câmara Federal
No legislativo municipal, Erika diz não ter sofrido transfobia por parte dos colegas de pleito. Na Câmara, entretanto, ela teme que seja diferente. “Fiquei receosa ao ver como se formou o novo Congresso; pelo aumento do conservadorismo e da extrema direita na Câmara e no Senado. Espero não me deparar com questões transfóbicas, porque elas não devem transitar em um espaço democrático como o parlamento. Mas a gente sabe que esse espaço tem se tornado um hospício, então não duvido de nada”.
Erika se refere à eleição de políticos de direita, que ocuparão grande parte das cadeiras do Congresso a partir de 2023. Ainda assim, acredita que ter sido eleita pode significar um sopro de esperança para que “ideias progressistas não se percam em meio ao conservadorismo”. “Trabalho no resgate da democracia. Acho que minha eleição é um grito de que a gente precisa avançar, caminhar e garantir a representatividade. O cenário é duro, e diante do retrocesso, da catástrofe política que estamos vivendo, existem grupos se firmando”, diz.
A então vereadora Duda Salabert, do PDT de Minas Gerais, também foi eleita neste outubro. Erika considera ambas as cadeiras como uma forma de resistência. “É o resultado de uma construção que vem de anos. E vamos dar continuidade”.