"Fui no inferno e voltei", diz mulher negra presa injustamente

Karen Cristina, de 29 anos, foi presa acusada de roubar a casa de um policial aposentado mesmo após a vítima identificar a verdadeira suspeita como uma mulher branca, loira e magra

11 ago 2022 - 12h27
(atualizado às 14h12)
Foto mostra Karen Cristina
Foto mostra Karen Cristina
Foto: Arquivo Pessoal / Alma Preta

"O preconceito foi porque eu era mulher, negra e, principalmente, porque eu era mulher de um preso". Esse é o relato de Karen Cristina, de 29 anos, que ficou presa por 11 dias reconhecida por foto acusada de um crime que não cometeu.

A acusação alega que a jovem teria participado de um roubo na casa de um policial federal aposentado, localizada no Cachambi, bairro de classe média na zona norte do Rio de Janeiro.

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O caso aconteceu no dia 24 de fevereiro deste ano, por volta de 1h, quando um policial aposentado voltava para casa. Segundo o depoimento, a vítima contou que foi abordado por um grupo (três homens e uma mulher) na porta de casa e, ao ser levado para o imóvel, onde também estava a esposa, ele teria sido agredido com chutes e pontapés, amarrado, trancado no banheiro. Além disso, teve bens roubados, entre eles, algumas armas.

Segundo o inquérito policial, ao qual a Alma Preta Jornalismo teve acesso, os suspeitos do crime foram identificados após a perícia encontrar impressões digitais no imóvel. Após cruzamento de dados, a polícia identificou dois suspeitos, sendo um deles cunhado de Karen, que foram reconhecidos pelas vítimas por meio de foto na delegacia.

Nenhuma impressão de Karen foi encontrada no local. Ela não tinha antecedentes criminais e nunca foi investigada, mas uma foto dela, registrada na carteirinha de visitante do presídio onde o marido está detido, foi utilizada pela polícia para que as vítimas identificassem a suspeita de ter cometido o crime.

Mesmo após a vítima relatar, em um primeiro momento, que a suspeita tinha a aparência de uma mulher branca, loira, de cabelo cacheado e magra, ele confirmou que Karen tinha participado do crime.  Ela foi presa no dia 25 de julho e só foi solta na última quinta-feira, 4, após mobilização do advogado, familiares e amigos.

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À Alma Preta Jornalismo, Karen Cristina resume como foram os dias enquanto esteve presa. "Não foram dias fáceis. Foram 11 dias muito difíceis. Eu posso te dizer que realmente fui no inferno e voltei", relata.

Conforme o processo na Justiça, a própria perícia confirma que não foram encontradas impressões digitais de Karen no local do crime, no entanto, a investigação cita que "constatou-se que a paciente Karen é cunhada do denunciado [...] As vítimas então, reconheceram por fotografia a denunciada Karen".

Segundo a defesa dela, no dia e horário do crime, ela estava em casa e só saiu às 5h do dia 24 de fevereiro, quando se deslocou para o trabalho, no bairro de Todos os Santos, onde atuava como cuidadora de idosos. A defesa comprovou a informação por meio da geolocalização do celular e da radiofrequência da antena telefônica de Karen.

O processo também traz a declaração da antiga empregadora de Karen. Ela confirmou que Karen prestou serviços nos dias 21 e 24 de fevereiro (dia do crime), pois no dia 23 de fevereiro levou o filho, uma criança de nove anos, para consulta no hospital onde realiza tratamento para tumor no reto. Documentos do hospital também comprovam a chegada e saída da acusada no hospital.

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Durante o processo, a defesa também alega que a fotografia e o fato do suspeito ser cunhado dela não eram provas suficientes para embasar a prisão. Além disso, também questionou o motivo de haver uma foto dela na delegacia, já que ela nunca teve passagem policial e a foto foi tirada no dia em que ela foi visitar o marido, em 2019.

"Uma única pergunta: como a fotografia da acusada foi parar no álbum de fotografias da Delegacia Policial 23ª DP se a mesma é primária, nunca foi investigada, tampouco, teve qualquer passagem policial?", questiona a defesa em um dos trechos do processo.

"Estão prendendo pessoas por prender"

A investigação durou seis meses e, segundo Karen, ela e o advogado descobriram que a verdadeira suspeita tem o mesmo nome que o dela. Ela também conta que nenhuma imagem de câmeras de segurança foi analisada pela polícia, mesmo existindo 25 equipamentos de vigilância onde a vítima mora, segundo investigação do seu advogado. Inclusive, teria sido ele que encaminhou as imagens ao Ministério Público do Rio de Janeiro.

Karen acredita que a polícia só prendeu uma inocente porque a vítima do caso é um policial. Até o momento, nenhum dos dois suspeitos já identificados foi preso, o que, segundo Karen, também dificulta a identificação da verdadeira suspeita.

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"Eu falei ao meu advogado: 'Doutor, quanto mais de provas eles precisam para ter certeza que eu sou inocente?'. Tem a antena do meu celular, o médico do meu filho, o reconhecimento de que eu sou totalmente diferente da mulher. Eles querem mais o que? Acaba sendo revoltante porque tem tantas provas e ainda assim eles querem mais provas para acusar uma inocente", desabafa.

O alvará de soltura de Karen foi expedido pela Terceira Câmara Criminal. Na decisão, a desembargadora Monica Tolledo de Oliveira pontua que o reconhecimento por foto utilizado como única prova pela polícia é "duvidoso" e "insuficiente" por apontar Karen como cunhada de um dos suspeitos. Além disso, a desembargadora ressalta a diferença física entre a suspeita e Karen.

"[...] Percebe-se grande diferença entre as características apresentadas pelas vítimas (cabelos claros (aloirados) e cacheados, branca e magra), com as características que se vê na foto da paciente no dia em que ela foi presa, em suma, convenhamos que a fotografia da Karen não exibe uma mulher branca, aloirada e magra", destaca a desembargadora em um trecho do processo.

Com a soltura, Karen agora responde em liberdade mas com adoção de medidas restritivas, como o comparecimento mensal em audiência e em todos os atos processuais e a proibição de sair do Rio de Janeiro sem autorização judicial.

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Evangélica, Karen acredita que a fé foi o principal combustível para enfrentar a situação e agora espera que a verdadeira justiça seja feita.

"Como aconteceu comigo pode acontecer com qualquer um. Então eu sou grata por estar sendo um canal para alertar outras pessoas que, infelizmente, isso pode acontecer. Um canal para abrir os olhos, mais uma vez, da Justiça, para fazer o Estado acordar pra vida e entender que tem muita coisa errada. Estão prendendo pessoas por prender, por banalidade, estão enfiando um monte de gente na cadeia... e vou te dizer: eu não sou a primeira e nem vou ser a última que, infelizmente, está passando por isso", finaliza.

A Alma Preta Jornalismo questinou o Ministério Público do Rio de Janeiro sobre o recebimento das imagens de câmeras de segurança na rua da vítima e buscou a Polícia Civil para questionar o motivo da foto de Karen ter sido utilizada para reconhecimento por foto mesmo sem ela ter antecedentes criminais, mas não obtivemos retorno até o fechamento da matéria. A reportagem será atualizada assim que houver um posicionamento.

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