Pela primeira vez desde sua criação, em 1967 - durante a Ditadura Militar -, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) será presidida por uma mulher indígena: a advogada Joenia Wapichana. Natural de Boa Vista, estado de Roraima, a mais nova presidenta da Funai acumula uma longa trajetória de defesa dos povos originários. Ela foi a primeira mulher indígena a exercer a advocacia no país e também a primeira deputada federal indígena do Brasil.
Em suas redes sociais, Joenia afirmou que "é um momento histórico para os povos indígenas do Brasil, que depois de tanta afronta, retrocesso e tendo o único órgão indigenista, totalmente sucateado, desmantelado, hoje, retoma a Funai. Uma Funai que é nossa". A advogada ainda destacou que ao aceitar o convite do presidente Lula (PT), deixou claro que pretende atuar com autonomia, sempre ouvindo os indígenas antes de tomar decisões.
Outro destaque é que a Funai deixa o Ministério da Justiça e Segurança Pública e passa a compor a estrutura do inédito Ministério dos Povos Indígenas, liderado pela deputada federal Sônia Guajajara (PSOL). Na pasta recém criada, o órgão passou a ser denominado Fundação Nacional dos Povos Indígenas - antes era Fundação Nacional do Índio. A mudança foi feita por meio da Medida Provisória 1.154, publicada nesta segunda (2).
Para Paulo Tupiniquim, coordenador geral da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (APOINME), a escolha de uma mulher indígena para comandar a Funai representa um avanço importante, que marca o fim de uma era militarista à frente da fundação.
"Estamos saindo da era da militarização dos órgãos responsáveis pela política indigenista e ganhando reconhecimento em um governo de fato democrático. Vale ressaltar que o cargo exige muita responsabilidade, pois temos uma diversidade de povos no país, que estão espalhados pelos quatro cantos, e todos precisam ser enxergados com igualdade e não olhar apenas uma região", pondera.
A criação da Funai no contexto da ditadura militar
Embora projetada para superar os antigos impasses do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a Funai acabou por reproduzi-los. Sua criação foi inserida no plano mais abrangente da ditadura militar (1964-1985), que pretendia reformar a estrutura administrativa do Estado e promover a expansão político-econômica para o interior do país, sobretudo, para a região amazônica.
As políticas indigenistas foram integralmente subordinadas aos planos de defesa nacional, construção de estradas e hidrelétricas, expansão de fazendas e extração de minérios. Sua atuação foi mantida em plena afinidade com os aparelhos responsáveis por implementar essas políticas: Conselho de Segurança Nacional (CSN), Plano de Integração Nacional (PIN), Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
Logo, a ação da Funai durante a ditadura foi fortemente marcada pela perspectiva assimilacionista. Por um lado, pretendia-se agregar os indígenas em torno de pontos de atração, como batalhões de fronteira, aeroportos, colônias, postos indígenas e missões religiosas. Por outro, o foco era isolá-los e afastá-los das áreas de interesse estratégico.
Para realizar este projeto, os militares aprofundaram o monopólio tutelar: centralizaram os projetos de assistência, saúde, educação, alimentação e habitação, obrigaram lideranças e indígenas para obter consentimento, e limitaram o acesso de pesquisadores, organizações de apoio e setores da Igreja às áreas indígenas.
"A Funai tem que trabalhar com a realidade indigena"
Até 1991, a Funai se manteve vinculada ao extinto Ministério do Interior, que sempre exerceu grande ingerência sobre suas ações. Os presidentes nomeados entre as décadas de 1970 e 1980 eram, em grande maioria, militares ou políticos de carreira pouco ou nada comprometidos, e até mesmo contrários aos interesses indígenas.
"A Funai seguiu o perfil militarista por um certo tempo, e deixou de seguir este perfil. Porém, na era Bolsonaro, voltou de novo a adotar o perfil militarista. Agora temos quatro anos para apagar isso da memória e da história, e trabalhar para que o órgão não venha novamente ser esse covil de militares", salienta Paulo Tupiniquim.
Segundo o coordenador geral da APOINME, "a Funai tem que trabalhar com a realidade indigena".
"A constituição Federal de 1988 nos libertou do regime de tutela e nos deu autonomia para atuar em diversos campos, além de nos condicionar a nos capacitar para assumir qualquer espaço, portanto, a Funai tem que assumir o seu papel de fato que é demarcar e proteger os território indígenas e não ser contra os mesmos", pontua.
Novas demandas e expectativas
Em 2002, a ratificação pelo governo brasileiro da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre "Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes" (1989) aprofundou a sustentação jurídica às demandas de povos antes tomados por aculturados e integrados, que atualmente reivindicam, em diversas regiões do Brasil, seus direitos indígenas diferenciados. Cada vez mais numerosas, estas reivindicações trazem novos desafios à atuação da Funai, responsável pela demarcação das Terras Indígenas no país.
Na virada do milênio, os conhecimentos indígenas e tradicionais passaram a ganhar destaque na agenda nacional e internacional. As discussões se concentraram na criação e aprimoramento de mecanismos legais que impediam que estas populações fossem expropriadas de seu rico patrimônio intelectual, produzido ao longo de gerações.
Em fins de 2009, o governo Lula anunciou, por meio de decreto presidencial (nº 7.056, 28/12), um amplo plano de reestruturação da Funai, que pretendia oferecer maior capacidade de atuação onde vivem os povos indígenas. No entanto, com o governo Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e, por fim, Bolsonaro, as ações de benefício aos povos indígenas e administração da Funai foram desmontadas.
Paulo Tupiniquim afirma que durante a gestão de Jair Bolsonaro, o diálogo a respeito das pautas indígenas era péssimo, mas que com a nova presidência da Funai sendo ocupada por Joenia Wapichana há esperança de reconstrução, apesar das dificuldades orçamentárias.
"Acreditamos em quem está à frente da Funai agora. Esperamos que as 13 terras que foram encaminhadas para equipe de transição sejam demarcadas nos próximos 100 dias de governo, e que outras terras também possam ser demarcadas no decorrer dos quatro anos, pois a demanda territorial, sobretudo, no nordeste brasileiro, ainda é gritante e tem sido motivo de vários assassinatos e criminalização de lideranças. Esperamos que o órgão possa avançar nessa política", destaca.
O coordenador da APOINME salienta ainda que a demarcação de terras por si só também não é o suficiente para a segurança indígena no Brasil, e que e esse processo necessita de ações completas, como demarcação, homologação, registro e desintrusão.
"Não adianta demarcar e deixar a terra cheia de posseiros, tem que ser pensado também em políticas de desenvolvimento sustentável, ou seja, dar condições para que nós possamos fazer a terra produzir, aí sim vamos mostrar que não somos entraves para o desenvolvimento do país, nunca fomos, mas podemos contribuir e muito para a produção de alimentos e combater a fome, que ainda assola milhões de pessoas", finaliza.
"O respeito aos indígenas no Brasil sempre foi imposição de instituições internacionais", destaca ativista'