A menina Gabriela viveu uma infância gostosa. Filha única, era o xodó dos pais, da avó materna e das tias e tinha um monte de primo para brincar junto. Criou um laço firme com as mulheres de sua família, todas pretas, com quem desde muito cedo aprendeu a trocar pensatas sobre as próprias realidades. Gabriela observava. As informações iam concatenando dentro de sua cabeça de menina à medida que a idade chegava.
Só que a adolescência já não foi tão gentil. Veio com ela as angústias pela exclusão e pelo racismo que sofria por parte dos colegas. Parecia que nada mais se encaixava, porque tudo era demais: o nariz era largo demais, a cor, escura demais; O cabelo, armado demais, e foi nessa coleção de superlativos que Gabriela acreditou por muito tempo ser de menos.
Os produtos químicos engoliram seus fios cacheados por décadas. A tentativa de se parecer com o que diziam ser bonito tornou a fase de paquera e flerte um martírio. Gabriela se achou insuficiente. Mas em casa existia uma rede de construção de autoestima poderosíssima. Tinha o pai, fã de Malcom X e Martin Luther King; a mãe, uma mulher forte que compartilhava com a filha as próprias vivências. Foi numa dessas trocas que Gabriela sentiu que deveria trazer reflexões sobre a própria aparência para uma rede maior, a internet. Surgiu, então, a Gabi De Pretas.
Ela queria falar de preta para pretas. E conseguiu. Hoje, o canal de Gabriela tem mais de 600 mil inscritos. Aos 29 anos, ela estudou Relações Públicas na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), trabalha com comunicação e imagem e divide seu tempo com a criação de duas crianças serelepes que desejam viver mil e uma aventuras nessa vida.
Em entrevista exclusiva ao Terra NÓS, Gabi fala sobre a adoção dos filhos, há um ano e meio, e sobre como a maternidade vem em primeiro lugar na sua nova rotina; relembra a explosão de seu vídeo mais conhecido, quando escancarou as inseguranças sobre seu rosto no YouTube, e enaltece a rede de apoio de outras mulheres pretas com quem sempre conviveu.
Construção da autoestima
Gabriela se tornou Gabi de Pretas quando seu canal, que começou com o apoio dos pais, começou a crescer. O apoio se fazia presente também no cotidiano: eram eles quem reiteravam a Gabi que era ela a detentora de seus sonhos; que poderia estudar e trabalhar com o que quisesse, que poderia (e deveria) dar sua opinião em qualquer momento e que poderia ir a qualquer lugar.
“Eles faziam tudo isso sem usar a palavra racismo, mas sabiam que existia um impedimento imposto pela questão racial. Eles reproduziam o que aprendiam; acreditavam que eu precisava alisar o cabelo para que ele fosse mais aceito, porque foi assim que eles aprenderam. Mas eu sempre tive bonecas negras. Minha mãe e meu pai sempre auxiliaram na construção da minha autoestima apesar do racismo”, conta Gabriela.
Entre ela, as tias e a mãe, as conversas se aprofundavam. Gabriela questionava o porquê de o cabelo crespo ser chamado de ‘ruim’, o porquê da reprodução do auto-ódio entre pessoas pretas. “Eu tentava entender por que o nariz largo era considerado feio, errado, em comparação aos outros. A gente trocava muito. Foi por isso que decidi levar esse espaço de questionamento ao YouTube. Quando comecei a estudar, fiz o inverso: levei as pautas que aprendia na universidade para dentro de casa, e foi bonito perceber o movimento da minha mãe e da minha tia, então, na construção da autoestima delas”.
Um dos vídeos mais populares de Gabriela, o “Tour pelo meu rosto”, já tem mais de 1 milhão de visualizações. Nas imagens, a youtuber se filma sem maquiagem com o intuito de expor características físicas que eram motivo de insegurança para ela: passou pelo nariz, pelos lábios e pelos olhos. O vídeo viralizou. Gabriela, no entanto, por pouco não abandonou a ideia de publicá-lo.
Antes de decidir expor suas fragilidades, enviou o vídeo a várias amigas. “Foi muito difícil fazer, quase não foi para o ar”, afirma. “Falar sobre insegurança nunca é fácil, mesmo tendo feito isso muitas e muitas vezes. Foi um vídeo muito marcante para mim e, posteriormente, para outras pessoas. Estamos sempre sob uma pressão estética absurda, em que nossos corpos são sempre julgados. Mas a gente sabe que a régua se estreita conforme a etnia, a idade, o corpo”.
Maternidade e uma nova vida
Faz um ano e meio que a vida de Gabriela ficou mais colorida, mas também sofreu uma virada grande, com a chegada de seus dois filhos. A decisão de adotar teve o apoio da família e, a cada dia que o processo seguia, o sentimento de que era o momento de ser mãe se aflorava mais e mais dentro dela. Hoje, Gabriela é mãe de dois irmãos, um menino de nove anos e uma menina de quatro, com quem ela exercita tudo de bom que viveu e tudo que aprendeu sobre amor.
Principalmente por não ter sido uma maternidade compulsória, mas algo sobre o qual ela teve certeza. “A maternidade tem sido muito boa para mim. É claro que é uma mudança insana, um turbilhão de procedimentos e sentimentos. É muito difícil. Quando assumi a responsabilidade de criar duas crianças, decidi que elas seriam prioridade na minha vida. Mesmo tendo encontrado um equilíbrio entre a Gabi-mãe, a Gabi-profissional e a Gabi-mulher, nenhuma delas pode decidir nada antes da Gabi-mãe”.
Pesa, ainda, quando Gabriela pensa em se relacionar com alguém. Ela é mãe-solo, e não pretende apresentar qualquer um para sua prole. Não é qualquer um que vai conseguir entrar na sua vida, ainda mais agora. “Qualquer cara que quiser alguma coisa séria comigo vai ter que entender que eu sou mãe de dois filhos. Tudo muda quando você se torna mãe. Acho que, se eu vier a namorar, vou demorar um bocado para apresentar o cara para as crianças. Já sou devagar com as coisas, e com criança envolvida fico mais ainda”.
Luta antirracista não deve ser só da esquerda
Reviver seus traumas como mulher preta retinta faz com que Gabriela tente ao máximo cuidar para que seus filhos se fortaleçam o máximo possível. Apesar de a luta antirracista ter ganhado um espaço maior na última década, ainda está longe da equidade racial sonhada por Gabriela para seus filhos.
“E ainda tem gente que acha que combater o racismo é coisa de esquerda. Não devia ser. A gente avançou muito nos debates devido a uma mudança geral no Brasil, a movimentos de inclusão na sociedade. Sinto, também, que as pessoas pretas estão mais encorajadas a buscar a equidade racial. Antes, elas duvidavam de si mesmas; duvidavam se atos racistas eram, de fato, racistas. Hoje, me parece que está mais escancarado. Esse avanço me faz ter ainda mais esperança no futuro dos meus filhos”.
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