Negros foram a maioria dos mortos, 84,1%, em intervenções policiais, segundo mostram dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2021. O número, assustador, reflete uma realidade que coloca as forças de segurança e a população negra, diariamente, em lados opostos.
Essa confrontação foi tema também do estudo Desafios da Responsabilidade Estatal pela Letalidade de Jovens Negros, publicado no final do ano passado pelo Núcleo de Justiça Racial e Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), que analisou oito episódios marcantes de violência policial contra a população negra que ocorreram no país entre 1992 e 2020, como o Massacre do Carandiru, a chacina do Borel, o caso Amarildo e o caso João Alberto de Freitas.
O estudo mostra ainda que esses casos todos têm em comum a incapacidade do Estado tanto em responsabilizar os agentes de segurança pelos homicídios quanto criar mecanismos para reduzir a alta mortalidade da juventude negra e periférica. Dos mais de cem policiais indiciados nos oito episódios, apenas nove foram condenados, revela o documento.
Em entrevista à DW, a pesquisadora Inara Flora Cipriano Firmino, que fez parte do estudo, afirma que esses oito episódios refletem a prática, por parte do Estado, de um genocídio da população negra. "Quando vimos quem são as pessoas que compõem essas comunidades, entendemos que esse processo de genocídio é um projeto que está em curso, de eliminação de corpos negros, em que se atira em qualquer um, na rua, sem saber se a pessoa vai tirar uma arma ou não para revidar", diz.
Segundo a jurista, uma das maneiras de mudar esse quadro é apostar na presença de mais pessoas negras na justiça criminal, tanto como juízes, quanto com procuradores e defensores públicos.
DW: O estudo analisou oito casos que ocorrem no Brasil nas últimas décadas para identificar os mecanismos da Justiça Criminal que levam às altas taxas de letalidade dos jovens negros. O que há de comum nesses episódios?
Inara Flora Cipriano Firmino: Escolhemos justamente oito casos, iniciando as investigações com o Massacre do Carandiru, em 1992, e indo até o caso do João Alberto Freitas [morto por seguranças em 2020 em um supermercado Carrefour em Porto Alegre], justamente com o propósito de olhar como o sistema de justiça criminal vinha investigando, julgando e percebendo esses casos envolvendo letalidade policial.
O comum desses casos era a força excessiva de agentes de segurança pública ou privada - como foi o caso do João Alberto - e especificamente contra as pessoas negras, que acabam morrendo por causa disso. E o que fica de importante desses casos é que o número de condenações dos policiais é extremamente baixo: até o momento, foram condenados e julgados apenas nove agentes de segurança dos mais de cem indiciados nos oito episódios.
O que fica evidenciado no estudo é que existem alguns mecanismos para retardar o funcionamento dos processos, que ou impedem ou dificultam a responsabilização dos policiais. Um deles é a passagem do tempo, pois vemos que esses processos vão se enrolando.
No final das contas, esses poucos policiais condenados em todos os casos analisados também tiveram as penas reduzidas e posteriormente alguns foram para a vida política ou voltaram à ativa, montando empresas privadas de segurança, por exemplo, algo que é muito comum.
Muito se fala da violência policial e da militarização das forças de segurança na letalidade da população negra no Brasil. Mas até que ponto essa responsabilidade é compartilhada por outras instituições?
Há, por exemplo, uma tendência do Ministério Público de não levar o caso adiante. Há um pouco essa dificuldade de o MP oferecer a denúncia, ou as investigações envolvendo não são bem fundamentas, bem embasadas, aí o MP abre mão da denúncia.
Ou então o Judiciário interrompe o caso logo de cara, falando que não é de júri popular. Isso é importante porque, nesses oito episódios analisados, a pressão popular e midiática foi muito intensa. É fundamental para o andamento processual, para que o Judiciário se movimente em relação a esses casos, para que não se pare na denúncia.
Quais tipos de reformas são as mais urgentes para que haja um freio nessa letalidade dos jovens negros? É possível fazer isso em tempo hábil, responsabilizando o Estado e as instituições?
Acho difícil conseguir pensar em algo com efeito 'rápido'. Quando olhamos para quem está no sistema de Justiça, para quem está nesses espaços de poder, até entre os policiais - os policiais que estão na linha de frente são majoritariamente negros, porque são corpos que estão lá para serem mortos -, mas quem está nos altos cargos, quem vai determinar os corpos matáveis, quem vai assinar o papel para responsabilizar... Nesses altos cargos não vemos pessoas negras.
Há uma dificuldade do sistema de justiça de incorporar as pessoas negras. Quando olhamos para os editais, concursos de carreira, depois da resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que estabelece o regime de cotas raciais, mesmo a partir dessa resolução, vemos que o número de pessoas negras não é grande entre os juízes, promotores ou até defensores públicos.
A permeabilidade desses espaços para pessoas negras é muito baixa. E isso tem uma repercussão direta em quem é visto enquanto réu, como se as pessoas negras só pudessem ser vistas como réus, não permitindo a ela um outro lado, o de julgar. Só de serem julgadas.
Isso dificulta demais essa possibilidade de mudança, eu te digo que sou esperançosa, que acho que isso vai mudar, mas a longo prazo. Estamos caminhando a passos lentos, mas caminhando, é algo que o movimento negro vem empenhando a muito anos. Vemos muito bons frutos, mas poucos frutos.
Como contexto histórico, racismo estrutural e formação Estado brasileiro se misturam nessa equação? Podemos afirmar categoricamente que há um genocídio da população negra?
Principalmente quando olhamos para os casos, não só os que estudamos, mas as chacinas que aconteceram recentemente no Rio de Janeiro - Jacarezinho, Penha - e tantas outras ao longo desses anos, elas estão totalmente vinculadas com essa proposta de genocídio comum do Estado brasileiro.
Essa ideia de genocídio é algo que é antiga, desde a construção do Brasil, desde o início em que se pretendeu eliminar os negros e indígenas para a composição única e exclusivamente da sociedade brasileira feita por brancos. Esse processo de eliminação foi sendo concretizado por diferentes formas.
Temos o encarceramento, que é a concentração e eliminação de pessoas negras, que ficam afastadas da sociedade nesse espaço. É completamente oposto à ideia de ressocialização, porque na verdade é para afastar esses corpos da sociedade. E há um genocídio também articulado com essas práticas da letalidade, que é comum, de invasão das comunidades literalmente atropelando as pessoas - como aconteceu em Paraisópolis -, atirando nesses corpos pelas costas.
Vídeos do Massacre do Jacarezinho são muito fortes e demonstram justamente, algo que normalmente só acessamos nos autos processais, que são pessoas com tiros na cabeça, com tiros nas costas. Indicativos que não houve trocas de tiros, mas disparos indiscriminados, acertamos quem estivesse pela frente.
Quando vimos quem são as pessoas que compõem essas comunidades, entendemos que esse processo de genocídio é um projeto que está em curso, de eliminação de corpos negros, em que se atira em qualquer um, na rua, sem saber se a pessoa vai tirar uma arma ou não para revidar.
São pessoas em que se é permitido atirar, agredir até a morte, como foi com Luana, com João Alberto. Sem dar o direito constitucional mais comum, que é o direito à vida.
Qual a consequência dessa letalidade para as mulheres negras, como as mães das vítimas, por exemplo?
Para as mulheres negras, são inúmeras as consequências do genocídio. Somos colocadas nessa ideia de que estamos na base da sociedade, da economia, com os menores salários, sem poder acessar cargos melhores.
E o genocídio nos afeta nesse espaço de dor. É característico para as mulheres negras, que, diante da letalidade e do homicídio contra os corpos negros, são colocadas nessa posição de luto e luta, porque estão vendo filhos morrerem, mas precisam lutar pela continuidade das famílias.
Além disso, elas também são violentadas no espaço da institucionalidade. Se antes se apontava essa letalidade policial só com homens, agora estamos vendo isso também com as mulheres negras, que são mais encarceradas nos presídios que as brancas, por exemplo. E, como no caso da Luana, a situação se agrava se essa pessoa for trans ou lésbica. As violências vão se somando. É uma luta que é constante, que não para. Precisamos lutar para sobreviver.