Governo Bolsonaro executa só 12% da principal ação de acolhimento a mulheres agredidas; entenda

Citada pelo presidente no debate da Band, implementação de unidades da Casa da Mulher Brasileira estacionou de 2019 pra cá

2 set 2022 - 15h08
(atualizado às 16h32)
Casa da Mulher Brasileira é considerada a ferramenta mais avançada do sistema de acolhimento porque reúne toda a rede necessária para interromper o ciclo de violência de forma quase que imediata.
Casa da Mulher Brasileira é considerada a ferramenta mais avançada do sistema de acolhimento porque reúne toda a rede necessária para interromper o ciclo de violência de forma quase que imediata.
Foto: Reprodução

O governo Jair Bolsonaro investiu 12% do orçamento federal previsto em seu mandato para o principal programa federal de acolhimento a mulheres vítimas de violência, o Casa da Mulher Brasileira, segundo dados tabulados pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) com base no portal Siga Brasil. Dos R$ 129 milhões reservados para a implementação de novas unidades, apenas R$ 15,3 milhões foram executados de 2019 para cá. Os valores estão atualizados pelo IPCA.

Unidade paulistana segue modelo definido pelo governo federal e oferece uma gama de serviços variados para a mulher vítima de violência. Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão Conteúdo

Citado por Bolsonaro no primeiro debate presidencial na TV, promovido pela Band, como uma "ação sua", o programa foi criado em 2013 pela então presidente Dilma Rousseff (PT) e abandonado durante a passagem de Damares Alves pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Neste ano, a estimativa é gastar somente R$ 8,2 milhões com parcerias que resultem na construção de unidades pelo País. O valor não cobre nem sequer a implementação de uma unidade de capital. De acordo com a própria pasta, são necessários R$ 13,7 milhões para essa implantação.

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A Casa da Mulher Brasileira é considerada a ferramenta mais avançada do sistema de acolhimento porque reúne toda a rede necessária para interromper o ciclo de violência de forma quase que imediata. Em um mesmo espaço, a mulher recebe atendimento de assistentes sociais, psicólogos, defensores públicos, promotores, juízes e guardas municipais para busca e apreensão ou resgate do restante da família. De acordo com o caso, é possível obter ali mesmo um medida protetiva.

Coordenadora da Casa da Mulher Brasileira da capital paulista, Ana Cristina de Souza segura flores feitas por voluntárias. Foto: Valéria Gonçalvez/Estadão Conteúdo

"A grande importância da Casa é exatamente sua capacidade de romper com o que chamamos de rota crítica, que é esse caminho que precisa ser percorrido pela mulher vítima de violência. Ela não precisa ir a outro lugar, como um fórum por exemplo, que pode ser um espaço intimidador num primeiro momento. É um grande ganho, a mulher fica fortalecida e a chance de ela desistir no meio do caminho diminui", explica a coordenadora da Casa da Mulher Brasileira da capital paulista, Ana Cristina de Souza.

Cobertura especial

    O equipamento paulistano foi inaugurado em 2019 e atende uma média de 1,5 mil mulheres por mês que sofrem todo tipo de abuso, como violência sexual, agressão física, verbal e até mesmo tentativa de feminicídio. O local conta com alojamento temporário para mulheres e crianças.

    Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2.695 mulheres foram mortas pela condição de serem mulheres nos últimos dois anos. Na média, isso quer dizer que uma mulher é vítima de feminicídio a cada 7 horas no Brasil. De acordo com o Inesc, os números alarmantes de violência contra a mulher são um retrato de um orçamento que não permite que os recursos federais cheguem aos Estados e municípios, ou quando chegam é com atraso e em quantidade insuficiente.

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    'Mimimi'

    Considerada falha nas ações e no discurso de Bolsonaro, a pauta feminina ganhou mais protagonismo na campanha presidencial depois de o presidente atacar adversárias e uma jornalista durante o debate do domingo passado. Diante das reações e, após afirmar que não é misógino e que declarações neste sentido são "vitimismo e mimimi", Bolsonaro disse que não se deve inventar mais políticas para mulheres. "Se aparecer novas, vamos adotá-las, mas não temos de inventar", afirmou.

    O presidente ainda citou que sancionou quase 70 leis em favor das mulheres — foram 46, na verdade, sendo nenhuma de autoria de seu governo. Outros seis projetos foram vetados por ele de forma integral ou parcial, incluindo o que garantia a distribuição de absorventes a mulheres carentes.

    A declaração do presidente segue o discurso adotado pela primeira-dama, Michelle Bolsonaro, desde a convenção partidária do PL, que lançou seu marido à reeleição, em julho. Com participação crescente na campanha, inclusive na propaganda eleitoral no rádio e na TV, Michelle quase sempre se dirige ao eleitorado feminino, que, segundo as pesquisas, tende a apoiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) — o petista tem, em média, o dobro das intenções de voto entre o público feminino.

    Simone Tebet discursa em favor de políticas para mulheres no 1º debate presidencial, promovido pela Band. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

    A repercussão negativa das falas de Bolsonaro e também de Lula no debate — o ex-presidente se negou a firmar o compromisso de ter ao menos metade de seu ministério formado por mulheres —, aliada à boa impressão deixada pelas candidatas ao Planalto Simone Tebet (MDB) e Soraya Thronicke (União Brasil), fizeram com que ambos reforçassem suas promessas e ações para esse segmento. Assim como o presidente, Lula também apelou à sua mulher, Rosângela da Silva, a Janja. Nesta quinta, ela já participou da propaganda eleitoral do PT falando às mulheres.

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    Ligue 180

    Segundo o mesmo levantamento do Inesc, o programa federal que mais recursos recebeu no atual governo foi o Ligue 180, o canal que recebe denúncias de violações de direitos humanos. Mesmo assim, os gastos com o serviço caíram 42% em termos reais entre 2019 e 2021, passando de uma execução financeira de R$ 44,1 milhões para R$ 25,8 milhões.

    Para a mestre em gestão pública Esther Leblanc, cofundadora do Instituto Arueras e integrante do Pacto pela Democracia, o cenário que já era de insuficiência das políticas nos últimos anos foi agravado pelos efeitos da pandemia e pelo conservadorismo político.

    "O fortalecimento do autoritarismo no Brasil afetou a capacidade da pauta feminina em se destacar no Executivo. A condição atual que o governo federal impõe à pauta de enfrentamento, com regressão de direitos e restrições orçamentárias, se replica em cidades menores, configurando um cenário preocupante de desmonte de políticas sociais e constantes investidas para regredir os direitos das mulheres", afirma.

    Segundo Esther, os últimos dados de 2015 da extinta Secretaria de Políticas para Mulheres também indicam que apenas 12,4% dos municípios possuíam organismos governamentais de políticas para mulheres, estruturas que potencializam ações do poder público para redução da desigualdade de gênero por meio de formulação, implementação e avaliação das políticas públicas para meninas e mulheres.

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    O Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos informou que o programa Casa da Mulher Brasileira já recebeu investimentos na ordem de R$ 101,5 milhões desde 2019, mas não explicou como chegou a esse número, já que os dados do portal Siga Brasil são divergentes.

    Em nota, a pasta afirmou ainda que, "seguindo as boas práticas de uso racional do erário, os pagamentos são realizados conforme o andamento da obra. Por isso, a execução do valor para este ano, de R$ 8,2 milhões, ainda está em andamento". Desse total, R$ 7,5 milhões foram empenhados, completa. De acordo com o ministério, há nove casas em fase de construção: Macapá (AM), Cariacica (ES), Salvador (BA), Ananindeua (PA), Teresina (PI), Mossoró (RN), Cidade Ocidental (GO), Japeri (RJ) e Jataí (GO).

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