Governo segue sem enviar Força Nacional 5 dias após sumiço na Amazônia

Presidente Jair Bolsonaro também não decretou Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para ajudar nas buscas do indigenista e do jornalista inglês; dupla desapareceu no último domingo, 5, nas proximidades do Vale do Javari, no oeste do Amazonas, região dominada pelo tráfico

10 jun 2022 - 11h27
(atualizado às 12h51)

Passados cinco dias do desaparecimento do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips no Vale do Javari, no oeste do Amazonas, e ainda sem ideia do que ocorreu com os dois, o governo federal não deslocou de outros Estados soldados da Força Nacional de Segurança para atuar nas buscas ou decretou Garantia da Lei e da Ordem (GLO), ao contrário do que costuma ocorrer em casos que envolvem regiões com pouca estrutura de segurança. O contingente de 250 homens da Marinha, Exército e das polícias federal, civil e bombeiros destacados na operação também está abaixo do que o Exército pode mobilizar, segundo militares e especialistas em selva ouvidos pelo Estadão.

Soldados do Exército atuam nas buscas de Dom Phillips e Bruno Pereira na região do Vale do Javari.
Soldados do Exército atuam nas buscas de Dom Phillips e Bruno Pereira na região do Vale do Javari.
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Soldados da Força Nacional atuam nas buscas, mas apenas quem já estava na região. Questionado pelo Estadão, o ministro da Justiça, Anderson Torres, se recusou a informar o contingente. Em operações como essa, a atuação de grande efetivo da Força Nacional serve para garantir um ambiente de segurança e tranquilidade na região para a investigação do caso, além do caráter simbólico de demarcar a presença do Estado em área de conflito. Bruno e Dom desapareceram no último domingo, 5, nas proximidades do Vale do Javari, uma região dominada pelo narcotráfico, quando faziam uma expedição.

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Nesta sexta-feira, uma portaria do Diário Oficial autorizou o envio da Força Nacional para combater crimes ambientais e narcotráfico na região do Médio Solimões. Essa medida, contudo, não tem nenhuma relação com o desaparecimento, que ocorreu em outro local, na região de Alto Solimões. Trata-se de uma operação antipirataria, demandada pelo governo do Amazonas, que está em curso e teve a participação do departamento renovada.

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Até o momento, o presidente Jair Bolsonaro também não decretou uma operação de GLO no Vale do Javari. Na avaliação do fundador do Grupo de Resgate de Montanha (GRM) de Joinville (SC), Sérgio de Oliveira Netto, que atua com órgãos públicos há 11 anos em salvamentos em diversas regiões do País, a medida poderia dar mais segurança à ação. "A Região Norte, infelizmente, em função de garimpo, do tráfico de drogas, do avanço dessas ondas criminosas, está uma área tomada. Se fosse fazer uma busca lá, eu só me sentiria seguro se realmente tivesse um aparato, um contingente grande dando segurança para as equipes, com tranquilidade, avançarem", disse.

A GLO já foi acionada pelo governo em outros momentos nas últimas décadas para agir na região Amazônica. Entre maio de 2020 e abril do ano passado, um efetivo de 2.500 - média diária - das Forças Armadas atuaram na Garantia da Lei e da Ordem e em ações na faixa de fronteira, em terras indígenas, unidades federais de conservação ambiental e em outros locais nos Estados da Amazônia Legal para reprimir delitos ambientais, o desmatamento ilegal e combater focos de incêndio.

Custos

Militares e especialistas em selva dizem que o efetivo militar, focado na operação de busca e salvamento, está abaixo da capacidade de emprego das Forças Armadas na região e tem sido alvo de questionamentos, de que pode, sim, ser aumentado. Apesar disso, oficiais defendem que as equipes em atuação são bem treinadas em ambientes de selva, e que mover e manter grandes contingentes demandaria muito tempo, perdendo agilidade nas buscas, além de ser dispendioso.

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Os militares argumentam que, no momento, essas dificuldades logísticas e a condição das buscas não recomendam uma mobilização maior de tropas. Por causa das condições da selva e da cheia dos rios, o CMA aposta na mobilidade de pequenas unidades, com lanchas de motor simples, conhecidas como voadeiras, ou duplo, de maior capacidade de transporte e velocidade. Em lanchas pequenas, os soldados conseguem vasculhar de forma mais fácil emaranhados na margem dos igarapés. Ampliar a quantidade de lanchas é um dos pontos admitidos por oficiais da ativa como capazes de dar mais efetividade às buscas.

As guarnições desembarcam e fazem varreduras a pé. Mateiros também costumam auxiliar nas trilhas, mas por enquanto não se embrenham mata adentro. Do Exército, participam soldados de Tabatinga, do 8º Batalhão de Infantaria de Selva, e de Tefé, da 16ª Brigada de Infantaria de Selva. Parte significativa dos praças nessas unidades são de origem indígena, conhecedores da selva.

Generais e coronéis consultados pela reportagem, dentre eles oficiais com curso de Guerra na Selva e Forças Especiais, afirmam que grandes contingentes nem sempre são adequados na Amazônia. Eles ponderam que só se deve ampliar a quantidade, redimensionando o efetivo e os meios, quando houver pistas mais concretas do paradeiro da dupla, por causa de dificuldades de se manter tropas grandes e equipamentos na região. O desgaste físico é intenso e não seria conveniente enviar muitos de uma vez, segundo especialistas.

Um general de quatro estrelas argumenta que, em dimensões como as da Amazônia, colocar 150 ou 1 000 soldados na selva pode não fazer diferença se "faltar rumo". Uma das estratégias de uma operação como essa é, a partir da notícia do desaparecimento, buscar informações de inteligência. Não apenas com contatos em comunidades ribeirinhas, mas inclusive por meio da observação de imagens de satélite para enviar as patrulhas onde é mais provável que estejam os desaparecidos, a fim de iniciar o rastreamento.

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Avião no Atlântico

Esse mesmo general compara a busca pelos desaparecidos na Amazônia à procura de um avião no Atlântico. Foi o que ocorreu na tragédia do voo Air France 447, Rio-Paris, que caiu na costa brasileira e foi encontrado na região Nordeste, em 2011. Os pedaços de fuselagem com corpos só começaram a aparecer boiando quando a operação se concentrou próximo a Fernando de Noronha, conforme indicavam os radares de controle aéreo, contatos de rádio e a rota prevista.

No caso de Bruno Pereira e Dom Phillips, não são somente os rios turvos da Amazônia, mas também o tapete verde formado pelo dossel da floresta tropical, capaz de ocultar divisões inteiras do Exército. E a ausência de pontos habitados, numa região inóspita, também é prejudicial.

A área de buscas, porém, já começou a ser delimitada. A busca não vai se estender por toda a terra indígena do Vale do Javari, que tem 85 mil quilômetros quadrados. Segundo informações iniciais da PF, as buscas se concentraram primeiro em cerca de 40 quilômetros de rio, entre a Comunidade São Rafael, um dos últimos lugares onde Pereira e Phillips foram vistos, e Atalaia do Norte, o destino pretendido por eles. Ontem, segundo informações do Gabinete de Crise, percorreram um total de 100 quilômetros, na calha do rio Itaquaí e afluentes.

Manifestantes e familiares de Dom Phillips participam de protesto na frente da embaixada brasileira em Londres, cobrando empenho nas buscas pelo jornalista e o indigenista Bruno Pereira, desaparecidos desde domingo, 5.
Foto: Reuters

Uma das preocupações dos militares, segundo mais de um oficial confidenciou à reportagem, é que o episódio exponha falta de soberania sobre a região. Não encontrar a dupla desaparecida pode atingir a capacidade das Forças Armadas na região, sobre a qual o País sempre reclamou total controle. Um deles, com larga experiência e anos de serviço na fronteira, diz que não se trata de vontade política, mas de administrar as capacidades e avaliar o terreno. Não se desloca tanta gente assim na Amazônia facilmente, afirmou um coronel de Forças Especiais, argumentando que o atual contingente de soldados e agentes engajados não é pouca coisa.

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"Seria insensato pensar que temos subdimensionamento no emprego de militares por considerar que o tema seja desprezível ou não mereça atenção", afirmou o general da reserva Francisco Mamede Brito Filho, formado em 1986 no Centro de Instrução de Guerra na Selva. "Os efetivos existem. Havendo uma linha mais precisa de investigação, dando direção, basta o Comando Militar da Amazônia decidir empregar. A defesa da Amazônia é um ícone para nós, aceitar que algo aconteça nessa região sem se dar uma resposta da efetividade da nossa presença lá depõe diretamente contra a imagem. Ninguém iria subdimensionar efetivos havendo como contrapartida algo tão negativo desse gênero, perante a sociedade. A repercussão é internacional. O momento de reafirmar nossa prioridade e nosso conhecimento na região amazônica é não deixar um caso com essa repercussão sem solução."

Para o general, não seria aconselhável despachar um contingente alto para a selva sem indícios mais concretos a direcionar as buscas. "Não vai ser a quantidade que vai ditar o grau de preocupação. A Brigada de Tefé é muito especializada, muitos são de origem indígena. Na Selva, a velocidade de progressão do soldado com fuzil e equipamento, em geral de 4 km/h, cai para menos da metade. Empregar em massa sem ter orientação ou dados para direcionar a busca, numa área de selva, seria totalmente desaconselhável", disse Brito Filho.

Outros dois coronéis a par das investigações, por outro lado, dizem que pelo tempo decorrido do desaparecimento a cada dia fica mais difícil desvendar onde estão o indigenista da Funai e o jornalista inglês, do The Guardian.

Itamaraty

Sob observação e pressão internacionais, o presidente Jair Bolsonaro disse que o Ministério das Relações Exteriores foi acionado para atuar no caso. Os contatos se dão sob sigilo e discrição. A embaixada britânica cobra esclarecimentos e afirma que mantém contato frequente com autoridades brasileiras, mas não dá detalhes das conversas. O governo brasileiro também não. O Estadão apurou que já houve contatos diplomáticos com a embaixada do Peru, mas não com a da Colômbia, ao menos em prol de cooperação nas buscas.

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A região do Javari, onde a dupla foi vista navegando pela última vez, é mais próxima da fronteira peruana, abaixo da tríplice fronteira. Por enquanto, os indícios são de que eles não atravessaram para território peruano, segundo militares.

Indagado sobre tratativas, o Itamaraty não respondeu. O Ministério da Defesa, que tem uma rede de adidos no exterior, não quis se manifestar. A embaixada britânica também não. "Acompanhamos com atenção a preocupante situação, em contato com as autoridades e diversas entidades privadas brasileiras", afirmou ao Estadão a embaixada do Peru, sem dar detalhes se haveria algum tipo de buscas em seu território.

Longe dos gabinetes, a realidade da fronteira é menos burocrática. O contato direito entre militares dos países vizinhos costuma se dar de forma muito mais informal, com troca de conhecimentos entre tropas por meios de telefonemas e até encontros presenciais, na linha de fronteira, entre os oficiais.

GLO

Em 2011, o governo da então presidente Dilma Rousseff enviou uma tropa de mais de 200 homens apenas da Força Nacional para manter a segurança pública em Rondônia, após um quebra-quebra nos canteiros da construtora na usina hidrelétrica de Jirau.

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Também naquele ano, após quatro lideranças rurais serem assassinadas no Pará, o governo petista autorizou uma ação coordenada entre o Ministério da Justiça e o Exército para investigar as mortes. A força-tarefa era composta pela Polícia Federal, Força Nacional de Segurança, Polícia Rodoviária Federal e forças de segurança pública dos Estados do Amazonas, Pará e Rondônia.

A reportagem enviou questionamentos ao Ministério da Justiça sobre as operações concomitantes por meio aéreo, marítimo e terrestre determinadas pela pasta. Não houve retorno até o momento.

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