'Há risco de que o autoritarismo seja triunfante', diz Sueli Carneiro

Para a filósofa, que será homenageada em seus 72 anos, o fundamental é agora resgatar a ambiência democrática

2 jun 2022 - 19h17
(atualizado às 19h34)

Uma das maiores pensadores negras deste país, a filósofa, educadora e ativista de Direitos Humanos, Sueli Carneiro, que raramente aceita dar entrevistas, traz reflexões relevantes no momento em que está prestes a completar 72 anos (24 de junho) e quando sua organização, Geledés - Instituto da Mulher Negra, completa 34 anos e inaugura o Centro de Documentação e Memória Institucional em sua sede, no centro de São Paulo.

Para seu aniversário, outra instituição, que leva seu nome e que funciona no imóvel onde a ativista residiu por 40 anos, no bairro do Butantã, em São Paulo, realiza nesse mês o 1º Festival Casa Sueli Carneiro. Entre os eventos comemorativos para o aniversário de Sueli está previsto na casa no dia 24 de junho, às 19h, o show-homenagem do sambista Tião Carvalho e o lançamento do livro Mulheres que gingam, de Janja Araújo, fundadora e coordenadora do Instituto Nzinga.

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Ativista e filósofa Sueli Carneiro é homenageada com eventos em seu aniversário de 72 anosFoto: Geledés
Ativista e filósofa Sueli Carneiro é homenageada com eventos em seu aniversário de 72 anosFoto: Geledés
Foto: Reprodução

Nesta entrevista, Sueli faz ao Estadão uma retrospectiva histórica do feminismo negro no País e sublinha o surgimento de organizações lideradas por mulheres negras como um "resultado da insuficiência teórica e prática do feminismo branco tradicional para identificar, compreender e equacionar politicamente as diferenças raciais, culturais experiência histórica das diferentes mulheres do mundo".

A filósofa elege ainda várias conquistas do movimento negro, em especial das mulheres negras nestas últimas três décadas, como a criminalização do racismo, a lei de 2003 que obriga o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas brasileiras, o Estatuto da Igualdade Racial e as cotas raciais nas universidades, estas últimas com a ameaça de sofrerem revertério. Isso porque, neste ano, o Congresso decide pela continuidade ou desmonte dessa política pública instaurada há dez anos.

Centro de Documentação e Memória Institucional em sua sede, no centro de São Paulo
Foto:

Geledés inaugurou seu Centro de Documentação e Memória Institucional, do qual você é diretora. O que significa o surgimento desse Centro neste momento?

A criação do Centro de Documentação e Memória Institucional de Geledés representa a conclusão de um processo vivido por nossa organização e, ao mesmo tempo de abertura para os novos desafios e perspectivas que a trajetória de Geledés vem ensejando. É a conclusão de um processo que iniciamos hás mais de três décadas, que produziu experiências exemplares para a sociedade civil brasileira e as políticas públicas para o trato das questões de gênero, raça e direitos humanos, que constitui um patrimônio, um legado, uma memória institucional que temos a responsabilidade política de organizar, sistematizar e disponibilizar para a sociedade e, em especial, para as atuais e futuras gerações de mulheres negras como fonte de conhecimento sobre os caminhos percorridos, êxitos alcançados e dificuldades persistentes nessa saga permanente por igualdade, justiça social e respeito à dignidade humana de pessoas negras, causa a qual temos nos dedicado.

Por outro lado, a organização dessa memória institucional abre novas perspectivas e exigências de reposicionamento e fortalecimento institucional que estão demandando novas estratégias de formação de quadros, novas demandas acadêmicas e parcerias institucionais que devem determinar as prioridades programáticas de Geledés nos próximos anos ou décadas.

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Como foi pensada a elaboração do Centro e o que se estabeleceu como prioridade quando foi realizada a parceria com o Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp?

Como já disse anteriormente, a organização da memória fazia parte das entregas pendentes de Geledés para a sociedade e o ativismo negro frequentemente postergado em função de ausência desse tipo de expertise de cuidado com a memória no interior de Geledés. A parceria com o AEL da Unicamp veio resolver essa lacuna.

A partir da reconstrução da memória da organização, com vasta documentação que se intersecciona com a própria luta antirracista no Brasil e no mundo, quais os possíveis novos caminhos de reflexão das questões de gênero, raça e direitos humanos em prol de uma nação antirracista?

Mesmo antes da inauguração, o que estamos vivenciando é uma apropriação das experiências realizadas e releitura e ressignificação dessas experiências à luz das necessidades contemporâneas do combate ao racismo e o sexismo. O processo ainda em curso de organização do Projeto Rappers, com a publicação de uma revista desenvolvida por Geledés no início da década de 1990, está inspirando uma nova abordagem do tema através do Projeto de Sistematização das Pedagogias da Geração Hip-hop e Culturas Juvenis nas Escolas que reintroduz e atualiza a experiência anteriormente realizada no Projeto Rappers para as novas gerações de educadores e jovens.

Entre as temáticas que Geledés se debruçou se destaca a implantação das ações afirmativas nas universidades brasileiras. Em ano que essas iniciativas poderão sofrer um revertério, como a organização e seu acervo podem vislumbrar referências?

Geledés trabalha com o tema das ações afirmativas desde 1999 e as diversas experiências realizadas sobre esse tema são o objeto da próxima publicação do Centro de Documentação e Memória Institucional que tem por título As Experiências de Geledés na Implantação de Ações Afirmativas e Cotas Raciais no Brasil a ser lançada no segundo semestre de 2022 como contribuição ao debate acerca da revisão da lei 12.711de 29 de agosto de 2012, conhecida como a Lei de Cotas.

Geledés também inaugurou a parceria estratégica entre governo, sociedade civil e empresa com o projeto Geração XXI que inspirou inúmeras outras iniciativas nesse campo num ativismo persistente em prol das ações afirmativas e, em especial, da política de cotas na universidade que culmina com a nossa participação na audiência pública convocada pelo ministro relator Ricardo Lewandowski por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) para julgar a constitucionalidade das cotas raciais que resultou em sua aprovação por unanimidade pelo STF em 2012 e julgou improcedente a ação contra as cotas ajuizada pelo DEM contra as cotas na UnB.

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Houve participação direta das organizações de mulheres negras no processo constituinte que culminou na Constituição de 1988. Quais as principais conquistas daquele momento e quais ameaças hoje sofrem em tempos de desrespeito às instituições democráticas, inclusive à própria Carta Magna?

Costumo dizer que Geledés é uma filha direta e talvez dileta do processo de redemocratização do Brasil, o que nos dá muito orgulho. Um momento de intensa mobilização social, prenhe de sonhos e esperanças de direitos de cidadania, de igualdade racial e de gênero, de justiça social. Neste contexto, somos consequência também do impacto, no Brasil, da revolução cultural de 1968, dos movimentos de direitos civis dos EUA, das lutas de libertação do continente africano do jugo colonial e da onda feminista que aflora na Europa e EUA nesse período. Esse é o caldo de cultura que forja a minha geração de militantes e as perspectivas políticas de movimentos sociais como o movimento negro e o movimento feminista. As contradições no interior destes movimentos irão determinar o surgimento de novos protagonismos.

Eu sempre aponto que organizações como Geledés são resultado da insuficiência teórica e prática do feminismo branco tradicional para identificar, compreender e equacionar politicamente as diferenças raciais, culturais e experiência histórica das diferentes mulheres do mundo. De igual maneira, a incapacidade dos movimentos negros de hegemonia masculina na época para admitir e equacionar em seu interior as contradições de gênero impôs a urgência para as mulheres negras de construir instrumentos próprios de luta política para afirmar, visibilizar e influenciar nas lutas por igualdade de gênero e raça.

Essa necessidade decorre da evidência de que os resultados ou conquistas das lutas travadas coletivamente pelas mulheres terminam por beneficiar quase exclusivamente às mulheres brancas pelo impacto do racismo sobre as mulheres negras. Igualmente, as conquistas coletivas dos negros tendem a beneficiar pelos efeitos de poder que o machismo produz para os homens negros a despeito de sua vontade. Essas condições determinam para as mulheres negras uma espécie de asfixia social confinando-as nos patamares inferiores da hierarquia social. Evidentemente que essa concepção, trazida pelas mulheres negras para esses movimentos sociais, encontrou resistências de todos os lados: fomos acusadas de promover o divisionismo tanto no movimento feminista quanto no movimento negro.

Houve resistência por parte das mulheres brancas?

As feministas diziam que éramos todas mulheres e esse era o fator principal de unidade de nossa luta e separar por meio de uma corrente de mulheres negras enfraquecia o movimento, e a mesma coisa nos diziam os líderes negros da época, que estávamos enfraquecendo a luta geral dos negros com um protagonismo paralelo. A necessidade desse protagonismo paralelo e também convergente nas questões gerais das mulheres e negros mostrou-se, tão verdadeira e tão justa que o feminismo negro realmente avançou sobre o feminismo tradicional e sobre o movimento negro e alterou as concepções, agendas e pautas dos dois movimentos.

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Desde a fundação da organização, nessas últimas três décadas, quais os principais avanços e retrocessos que elegeria para a superação das desigualdades criadas pela prática da discriminação racial?

Sempre que posso procuro ressaltar as conquistas que os movimentos negros e de mulheres vêm alcançando nos últimos 40 anos, porque o apagamento da incidência política dos movimentos sociais e as transformações que eles ensejam é parte das estratégias de deslegitimização de sujeitos políticos que lutam pela efetivação da democracia em nosso país.

Creio que o momento atual exige que lembremos, e eu insisto em lembrar, que com todas as contradições e complexidades que cercam o enfrentamento ao racismo e às desigualdades raciais, nos últimos 40 e poucos anos os movimentos sociais negros e de mulheres negros foram capazes de conquistar, como a criminalização do racismo na constituição Cidadã de 1988 que tornou o racismo crime inafiançável e imprescritível, o agravamento da pena do crime de injúria no Código Penal quando ele ocorrer por motivação racial e a inscrição na Constituição do direito de propriedade aos remanescentes das comunidades dos quilombos, só para citar algumas das conquistas, que foram inúmeras.

Formulamos o Plano Nacional de Saúde da População Negra em que fizemos o Estado brasileiro reconhecer a desigualdade na expectativa de vida de negros e brancos; a lei de 2003 que obriga o ensino da história da África e da cultura afro-brasileira nas escolas brasileiras, as cotas raciais, e o Estatuto da Igualdade Racial em que buscamos dar estatuto legal nacional às recomendações da Plataforma de Ação da Conferência de Durban.

Por isso, mais do que nunca, é preciso lembrar, revisitar, ressignificar as estratégias de luta e sobrevivência que fomos capazes de desenvolver em outros momentos semelhantes e que nos trouxeram até aqui.

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Os combates vêm muitas vezes impregnados de emoções. Se tivesse que fazer uma retrospectiva desses 34 anos de sua organização, quais os momentos que destacaria? E o que faria de diferente?

A criminalização do racismo e a quebra do pátrio poder na Constituição de 88, a quebra do pátrio poder na unanimidade do voto dos ministros do STF pela constitucionalidade das cotas raciais nas universidades, a Marcha Zumbi dos Palmares pela Cidadania e a Vida de 1995 no Tricentenário da imortalidade de Zumbi dos Palmares, A Marcha das Mulheres Negras, em 2015, foram momentos para mim muito emblemáticos, em que a ação política dos movimentos negros e de mulheres fez avançar o reconhecimento da sociedade sobre os danos sociais produzidos pelo racismo e o sexismo e impactaram as políticas públicas.

Como avalia o momento atual?

O fundamental nesse momento é resgatar uma ambiência democrática que nos permita voltar a disputar diferentes agendas. Essa é a maior ameaça que estamos vivendo: corremos o sério risco de que o autoritarismo seja triunfante. O desafio do campo progressista é evitar essa catástrofe. Nós precisamos resgatar aquela democracia de baixa intensidade; que mesmo sendo assim, de baixa intensidade, nos permitiu construir processos e disputas por políticas públicas de igualdade de gênero, raça, e justiça social. É isso a prioridade, assegurar essa ambiência democrática para que as nossas pautas tenham lugar.

A boa nova nesse momento é a vitória de todos os que se empenharam nesse momento nas eleições para trazer ao processo eleitoral mais de dois milhões de jovens eleitores. Esse foi um ganho para a democracia, para a política, para o processo eleitoral, de consciência política dessa geração que está aí.

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