Em apenas um ano, o número de denúncias sobre ataques contra terreiros mais que dobrou. De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), em 2020, foram registradas 243 casos. Já em 2021 este número chegou a marca de 571. Neste ano, no último dia 1º de janeiro, há pouco mais de um mês, o Ilê Axé Ayabá Omi, também conhecido como 'Terreiro das Salinas', teve suas atividades interrompidas e ainda segue sem previsão de quando poderá retomá-las. A casa de axé foi vítima de um incêndio criminoso, que comprometeu completamente sua estrutura e, por consequência, seu funcionamento.
Fundado há três anos pelo professor e babalorixá Lívio Martin, o Ilê Axé Ayabá Omi seguia e compartilhava dos ensinamentos da tradição Jeje-nagô até ser surpreendido com o fogo. O caso abriu a estatística de crimes de violação a liberdade de crença neste ano, seguindo uma onda crescente de registros.
"Passamos por um momento de impotência por vermos tudo aquilo que a gente construiu, com todo suor, se acabar em fogo por racismo religioso. Diante dessa falta de respostas sobre quem [é o responsável] e como tudo aconteceu, temos que lidar com a frustração de estarmos o tempo inteiro querendo que as coisas andem, mas dependendo da sensibilidade de outras pessoas", desabafa Vanessa Ferreira, abiã (adepta ainda não iniciada) e porta-voz do Ilê Axé Ayabá Omi após o ocorrido.
Vanessa afirma que partilha, junto à comunidade que faz parte da casa, um sentimento de revolta diante da impunidade e a ausência de informações e atualizações sobre o ocorrido. "Nós todos estamos com um sentimento de revolta, mas não aquela que pede por vingança, mas, sim, por justiça. Isso parte muito de um entendimento de que nós estamos cansados de resistir o tempo todo. Só queríamos existir, dar continuidade aos nosso cultos, sem precisar estarmos nessa luta constante", desabafa.
Histórico de perseguição
De acordo com a religiosa, a intolerância contra a casa já se manifestava quando os rituais foram interrompidos em outras três ocasiões com a justificativa de que os encontros infringiam as leis de bom convívio na localidade onde está o Ilê Axé Ayabá Omi. Vanessa relembra que o espaço já foi alvo de denúncias anônimas, que resultaram em abordagens policiais, que alegavam que as práticas religiosas impossibilitaram o silêncio e o sossego dos moradores próximos.
"Uma das vezes que a polícia foi até a casa, lembro que uma das entidades para qual estávamos cultuando e cantando estava em terra e, mesmo assim, tivemos que parar para explicar aos policiais que estávamos resguardados, por sermos uma instituição religiosa. Algo difícil de lidar", pontua.
Para os membros da casa, situações como essa poderiam ser contornadas junto à comunidade local pela incidência que o Ilê Axé Ayabá Omi tem no bairro, a partir da distribuição semanal de sopa, do reforço escolar gratuito oferecido às crianças, além da entrega de cestas básicas da campanha 'Tem Gente Com Fome', da Coalizão Negra por Direitos.
Solidariedade
Em nota, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro) repudiou o ataque ao Terreiro das Salinas, prestou solidariedade à casa de axé e pediu investigação e responsabilização dos criminosos diante do ocorrido. Além disso, ressaltou a importância de políticas públicas voltadas à proteção e seguridade de direitos dos povos de terreiro.
"Apenas com políticas públicas que combatam o racismo, promovam os direitos dos povos de terreiro e fortaleçam a liberdade e a diversidade religiosas é que nossa sociedade poderá prevenir e impedir que situações execráveis como esta se repitam", diz o texto.
'Não ao racismo religioso': povo de terreiro protesta contra ataques discriminatórios
Igor Travassos, do Ilê Obá Aganjú Okoloyá - Terreiro de Mãe Amara, tradicional casa de axé nagô do Recife reafirma que é preciso que autoridades públicas saiam da atuação rasa de seus discursos e instituem políticas públicas que resguardem a comunidade em questão.
"Vários estados já dispõem até de delegacias especializadas para o combate às intolerâncias, por exemplo. Falta vontade do poder público em campanhas de alto impacto contra o racismo, especialmente o racismo religioso. A Lei 10.639/03, por exemplo, que assegura o ensino da história e culturas africanas e afrobrasileiras em sala de aula até hoje não é cumprida, muito menos fiscalizada", dispara.
Questionado sobre como o movimento social avalia a situação sofrida pelo Terreiro das Salinas, Travassos ressalta que o que aconteceu é crime de racismo, por esse tipo de violência ter um alvo, a negritude.
"O racismo é exatamente o extermínio da população negra em todas as suas manifestações. O que aconteceu no Terreiro das Salinas é o que acontece todo dia nesse país: o genocídio do povo negro. Nós somos impedidos e impedidas de cultuar nosso sagrado, o invisível. É esse tipo de controle, o controle da nossa subjetividade, da nossa fé, que a branquitude opera. Nós não podemos ser livres", finaliza.
Atualmente, após os procedimentos jurídicos e legais serem tomados com apoio do Projeto Oxé - atendimento jurídico e psicossocial contra o racismo, como a realização da abertura do boletim de ocorrência na Delegacia de São José da Coroa Grande, o caso segue em investigação pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE). Movimentos sociais pedem por celeridade nas investigações e que o crime não saia impune.
Para ajudar na reconstrução, no próximo dia 19 deste mês, o Ilê Axé Ayabá Omi realizará chamada para voluntários (Imagem: Reprodução/Instagram)
Reconstruindo Salinas
Para dar continuidade aos cultos religiosos o quanto antes, o Ilê Axé Ayabá Omi, junto a organizações e movimentos sociais, realiza campanha de arrecadação a fim de viabilizar o projeto de reconstrução do terreiro. A iniciativa foi proposta e divulgada pela rede social oficial da casa, que também se organiza para realização de mutirões de ajuda.
A meta de arrecadação para a reconstrução é 45 mil reais e, até o momento, mais de um mês após o incêndio, o valor arracadado foi de apenas 9 mil reais. Sobre as dificuldades para a obra, o Ilê Axé Ayabá Omi aponta os orçamentos altos dos materiais necessários.
No próximo dia 19 de fevereiro, a casa pretende realizar uma convocatória de 30 a 50 voluntários do Recife para ajudar nas atividades de reconstrução. A ação será possível graças a doação de um ônibus disponibilizado pela Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, que viabiliza o transporte para quem puder ser voluntário.
Às pessoas interessadas em contribuir com a reconstrução, a ajuda pode ser feita através do link da Vakinha ou por pix disponibilizado no Instagram oficial do Terreiro das Salinas.
Conheça o trabalho do único terreiro autorizado a prestar auxílio afro religioso em presídios