A empresária e fundadora da Associação Transbordamos, Bruniely Lemos, 29 anos, usou a própria história para mudar o enredo da vida de outras pessoas trans. Hoje, a entidade que oferece apoio social à população trans e familiares já ajudou mais de 2 mil pessoas, mas o caminho de Bruniely até a construção desse trabalho não foi fácil: alvo de preconceito desde a infância por causa do seu gênero, ela superou a prostituição, o tráfico de drogas e a prisão.
"Acredito que histórias mudam histórias, pois as pessoas acham que não pertencem aos espaços, mas quando se veem ali, representadas por uma pessoa que conseguiu, enxergam que também podem conseguir", diz. No Brasil, apenas nove estados possuem capacitação da Polícia Civil para enfrentamento à homofobia: São Paulo não é um deles. Entre julho a dezembro de 2021, cerca de 3,7 mil pessoas LGBTs estavam presas em alguma penitenciária do País.
Bruniely se descobriu transgênero ainda na infância. Por ser afeminada, era constantemente alvo de humilhação de bullying na escola. “As crianças não brincavam comigo. Eu esperava tanto chegar a minha vez de brincar que dormia na calçada e minha mãe tinha que me buscar", relembra.
A infância difícil era um presságio de que para ser quem é com liberdade, ela precisaria ser forte. Passou pela transição de gênero na adolescência, época em que trabalhava como maquiadora numa agência de modelos. Não demorou muito e ela começou a fazer a terapia hormonal por conta própria já que, na época, conseguir fazer o tratamento pelo SUS era ainda mais difícil. Quando as mudanças no corpo começaram, ela optou por usar roupas consideradas femininas, e foi aí que a gerência da agência em que ela trabalhava a chamou. "Ele disse que não era nada comigo, mas iria encerrar meu contrato e eu não faria mais parte da equipe. Fui mandada embora e fiquei triste, mas, ao mesmo tempo, feliz, porque poderia assumir minha identidade e quem eu realmente era".
Em casa, a família também não aceitava sua transição de gênero. "A mulher nunca transiciona sozinha. Tudo em volta também transiciona. Passamos do afeto para a solidão e falta de amor, de dentro da sociedade para a margem da sociedade, do mercado de trabalho para a prostituição, do ambiente escolar para o ambiente de violência. Isso é o que sobra. Eu vi tudo minando, os amigos, família, sonhos, esperança, expectativa de vida, vi tudo indo embora. O preconceito e a intolerância levam tudo".
Prostituição e prisão
Sem emprego, sem acolhimento familiar e estabilidade emocional, Bruniely começou a se prostituir. "Algumas sobrevivem, mas poucas vivem dignamente. Eu tive a prostituição como única escapatória para minha sobrevivência, mas é um mundo muito violento. Para fugir da prostituição eu fui para o caminho do tráfico de drogas, que também é uma escapatória de sobrevivência para pessoas trans. Ali consegui minha independência financeira e podia transicionar cada vez mais, comprar mais roupas e manter uma aparência mais feminina. Mas isso só até o dia em que fui pega pela polícia e presa em flagrante por tráfico", relembra.
Foi na prisão que Bruniely viu todos os seus direitos e dignidade serem retirados. Mesmo se identificando como uma mulher trans, foi para um presídio masculino e teve que dividir cela com 40 homens. Ela teve seu cabelo raspado e passou a conviver com pensamentos negativos, de não pertencimento e até mesmo de suicídio em alguns momentos. "Eu tive todos os meus direitos violados em um ambiente machista, insalubre e extremamente preconceituoso. Lá também refleti bastante sobre minha vida e por que o corpo trans vai para a margem.
A penitenciária acaba fazendo parte da vida de uma pessoa trans e a sociedade quer que esses corpos fiquem ali. Passamos por uma exclusão social e uma violência gratuita é lançada contra nós. Esse fardo é muito pesado e eu cheguei a pensar em desistir de tudo, não tinha mais esperança ou sonhos. Quando cheguei na penitenciária até pensei que fosse morrer lá dentro, e a maior violência vinha de policiais e agentes penitenciários que cometem violências institucionais e não aceitam nossa identidade. Eu não apanhei de outros presos, mas apanhei do Choque” .
Ela conta que o diretor da unidade a proibiu de se apresentar de acordo com o seu gênero."Lembro de uma vez que o diretor da unidade me chamou e disse 'nosso sistema tem direito ao uso do nome social, hormônios, cabelo, suas vestes, lingerie e integridade física, mas pra gente ter um bom convívio você não vai existir nada disso'. O abandono dessas mulheres lá dentro é muito muito triste, não recebem cartas e nem visitas, e o que sobre é a solidão".
Recomeço
Depois de um ano e meio presa, Bruniely conseguiu sua liberdade, mas ainda sofria com os estigmas impostos a uma mulher trans e ainda por cima ex-presidiária. Foi como revendedora de produtos de beleza, que ela conseguiu se reerguer. Depois de ser premiada como uma das melhores revendedoras da sua região, ela criou a Associação Transbordamos em São José dos Campos.
O projeto é voltado para o empoderamento de pessoas trans na região do Vale do Paraíba e parte do DNA é o enfrentamento à violência e garantia de direitos das pessoas trans. Hoje, com pouco mais de dois anos de atuação, a Associação Transbordamos conta com sete comissões: saúde, educação, cultura, autonomia financeira e empreendedorismo, jurídica, assistência social e comunicação e redes sociais.
Com toda essa estrutura, mais de 2 mil pessoas trans já foram atendidas e receberam acolhimento, assistência com alimentos, roupas, kits de prevenção e teste de HIV e foi realizado até um mutirão para retificação de nome e gênero em parceria com a Defensoria Pública e a comissão de diversidade da OAB.”"Todas as pessoas deveriam rever seus preconceitos porque as pessoas trans também são seres humanos. Nós resistimos para chegar até aqui e para avançar ainda mais, a sociedade, e também o setor privado, devem adotar uma postura de agentes da mudança. Temos que trazer pessoas trans para perto ao invés de aceitar uma imposição social e devemos tomar posse de tudo aquilo que o preconceito e a intolerância nos tiraram”.