Alunos do Rio de Janeiro são investigados por espalhar fotos manipuladas de meninas de 14 anos. Casos parecidos já foram registrados na Espanha e nos Estados Unidos. Meninas não podem viver temendo mais um tipo de abuso. A vida das adolescentes não é fácil.
Entre elas, é comum conversas sobre a melhor roupa para usar em transporte público para evitar assédio, discussões sobre o jeito mais seguro de voltar para casa depois da balada e todo tipo de preocupação para escapar de abusos. Falo isso não só porque já fui adolescente, mas também porque convivo com algumas. E posso dizer, essas preocupações são divididas por meninas de São Paulo a Berlim.
E piorou. Agora, as garotas têm um outro medo para adicionar a suas listas de preocupações: os nudes gerados por IA (inteligência artificial). Parece coisa da série Black Mirror, mas aconteceu no Rio de Janeiro. E também em vários lugares do mundo.
No caso do Brasil, um grupo de estudantes do colégio de elite Santo Agostinho, no Rio de Janeiro, está sendo investigado por usar inteligência artificial para manipular imagens de cerca de 20 meninas da escola. Eles teriam copiado fotos que as garotas publicaram em redes sociais e, com aplicativos que usam inteligência artificial, "tirado suas roupas", ou seja, eles transformaram as fotos das meninas em nudes. As imagens foram espalhadas em grupos de aplicativos de mensagem.
Os meninos que teriam praticado o crime têm entre 12 e 15 anos. As meninas que tiveram as suas imagens manipuladas e expostas têm em sua maioria 14 anos. Repito: 14 anos!
No caso do Santo Agostinho, os pais das vítimas procuraram a 16ª DP (Barra da Tijuca) e a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) e registraram queixa. O caso passou a ser investigado pela polícia civil.
No momento, os pais das vítimas, com toda razão, pedem que os alunos sejam expulsos. E a polícia investiga se o mesmo tipo de abuso não se espalhou por outras escolas da cidade.
Onda mundial
O horror não é exclusividade do Brasil. Em setembro, um caso igual foi registrado na Espanha, na província de Badajoz. Pelo menos 28 garotas, com idade entre 11 e 17 anos, foram expostas com nudes feitos por IA por meninos da cidade, também adolescentes. Os suspeitos foram denunciados pelos pais das vítimas para a polícia.
Casos parecidos também já foram registrados nos Estados Unidos. Ou seja, o mundo vive mais uma onda de abuso contra as mulheres (no caso, menores de idade, crianças).
Se as autoridades não tomarem providências, a onda pode se espalhar. Isso porque criar um nude virtual parece ser muito fácil. Dando uma simples busca no Google achei vários aplicativos e artigos com dicas de aplicativos que prometiam tirar a roupa de "qualquer garota". Todos estão sendo anunciados sem problemas. Se eu quisesse praticar um crime, teria sido fácil.
O que fazer com isso? Países do mundo todo discutem a regularização da IA. Mas ainda não existem leis específicas para o caso de "nudes falsos", que, obviamente, podem se enquadrar em delitos já previstos na legislação.
No Brasil, o artigo 216-B do código penal diz: "Produzir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, conteúdo com cena de nudez ou ato sexual ou libidinoso de caráter íntimo e privado sem autorização dos participantes". A pena para esse crime varia entre seis meses e um ano de prisão e multa.
Perdas e danos
É difícil imaginar a revolta das meninas e de seus pais. Mas o que podemos afirmar com certeza é que esse tipo de exposição criminosa online pode ter sérios efeitos psicológicos nas vítimas. Quem sofre "exposed" pode apresentar sintomas de distúrbio pós-traumático. Em casos mais severos, esse trauma pode até fazer com que as vítimas tenham ideias suicidas.
Tudo fica pior quando lembramos que as atingidas, tanto no Brasil como na Espanha, têm entre 12 e 15 anos - idade onde somos muito mais suscetíveis a bullying e situações vexatórias.
Já seria terrível para uma mulher adulta lidar com exposição de nudes (sejam falsos ou não) em ambientes de trabalho. Imagina isso acontecendo com meninas em ambiente escolar? Só de imaginar a dor delas eu sinto angústia.
As marcas dessa violência nunca sairão das vítimas, tenho certeza. E agora, que dicas elas podem trocar para evitar assédio, o que podem fazer para se proteger? Que conselhos os pais podem dar? O que fazer, se qualquer um pode pegar uma foto e simplesmente "tirar a roupa da garota"? É apavorante.
Esses assédios só vão parar de acontecer quando a sociedade toda entender que mulheres não são "coisas" e que seus corpos precisam ser respeitados. Meninas não são bonecas online, que você pode despir na internet. Elas são pessoas. E precisam, entre outras coisas, da lei para as proteger, já que os garotos não parecem ter noção o suficiente.
É preciso também uma tomada de consciência geral pelos cuidadores. Poxa, que tipo de pais criam meninos capazes de cometer esses crimes contra colegas em pleno 2023, quando todo mundo sabe o que é feminismo e que "não é não"?
Nunca foi fácil ser menina. Mas um dia precisa, pelo menos, ser menos apavorante e arriscado. Elas não merecem outro medo e outras formas de abuso.
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Nina Lemos é jornalista e escritora. Escreve sobre feminismo e comportamento desde os anos 2000, quando lançou com duas amigas o grupo "02 Neurônio". Já foi colunista da Folha de S.Paulo e do UOL. É uma das criadoras da revista TPM. Em 2015, mudou para Berlim, cidade pela qual é loucamente apaixonada. Desde então, vive entre as notícias do Brasil e as aulas de alemão.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.