Em uma decisão publicada no fim da tarde de sexta feira, 26, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região derrubou a liminar que havia suspendido os efeitos de uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe um procedimento usado em casos de aborto legal de gestações resultantes de estupro após 22 semanas.
A norma, publicada no começo de abril, determina que, a partir dessa idade gestacional, os profissionais ficam impedidos de fazer a chamada assistolia fetal, que consiste na injeção de uma substância que provoca a morte do feto para que depois ele seja retirado do útero da mulher.
O procedimento é respaldado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a partir das 20 semanas de gestação. Logo após a publicação da resolução, especialistas criticaram a norma, alegando que ela vai contra a legislação vigente no País e dificultará o acesso ao aborto legal, em especial para meninas e mulheres em situação de maior vulnerabilidade.
Em reação, o Ministério Público Federal (MPF), a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB) e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) recorreram à Justiça pela suspensão da medida por entenderem que a resolução criava "restrições indevidas de acesso à saúde" por parte de vítimas de estupro que engravidassem.
No ultimo dia 18, a Justiça Federal no Rio Grande do Sul concedeu uma liminar (decisão provisória) que suspendia os efeitos da resolução. A juíza federal Paula Weber Rosito, da 4ª Vara da Justiça Federal do RS, que assina a liminar, afirmou que o Conselho Federal de Medicina, por ser uma autarquia, não tem a competência para criar restrição ao aborto em caso de estupro.
O CFM recorreu e, nesta sexta, conseguiu derrubar a liminar. Em sua decisão, o desembargador Cândido Alfredo Silva Leal Junior alega que a questão deve ser melhor debatida e diz que o tema já é objeto de outras ações judiciais que ainda não tiveram um desfecho.
Ele destacou duas Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 989/2022 e ADPF 1.134/2024) que correm na Justiça. A primeira, anterior à norma, questiona uma recomendação expedida pelo Ministério da Saúde durante o governo Jair Bolsonaro em 2022 que também desaconselhava a realização da assistolia fetal após 22 semanas. A outra ação questiona a resolução do CFM em si.
O documento da gestão anterior do ministério questionado em uma das ADPFs foi elaborado pelo então secretário de Atenção Primária do ministério na gestão Bolsonaro, o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, que hoje é conselheiro do CFM e foi o relator da resolução da entidade médica.
"Nesse contexto, não me parece oportuno que, em caráter liminar, e sem maiores elementos, o juízo de origem suspenda os efeitos de resolução do Conselho Federal de Medicina que trata de questão que: a) terá impacto nacional; b) está - ainda que sob outra roupagem - submetida a julgamento pelo STF; e c) e necessita de um debate mais amplo e aprofundado", argumenta o desembargador.
"O que se busca agora evitar é que, por meio de decisão singular com eficácia e abrangência em todo o território nacional, seja suspensa norma que guarda relação com matéria objeto de discussão em ADPF, e em relação à qual o STF não deferiu medida cautelar para suspender os efeitos do ato questionado", continua Leal Junior, em sua decisão.
O juiz federal ainda afirmou na decisão que a resolução poderá ser questionada e analisada caso a caso nas instâncias superiores da Justiça.
"Ficando preservadas as situações individuais (em que os interessados poderão levar a questão ao Judiciário e obter tutela jurisdicional específica adequada ao caso concreto), e existindo regulamentação do órgão técnico competente (Conselho de Medicina), não parece prudente suspender a norma técnica em caráter amplo e geral mediante a liminar deferida nesta ação civil pública, parecendo oportuno que a questão seja melhor debatida sempre com a possiblidade que os casos concretos tenham tratamento específico e individualizado", escreveu o desembargador.
Normas sobre aborto legal já tiveram outras polêmicas
No Brasil, o aborto é permitido quando há risco à vida materna, em casos de estupro e de gestação de feto anencéfalo. Não há limite de idade gestacional para a interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Entidades que defendem o direito das mulheres ao aborto legal argumentam que crianças e mulheres mais jovens e vulneráveis são as que mais necessitam de cuidados em interrupções depois de 20 semanas porque demoram mais a conseguir acesso aos serviços de saúde.
Em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde chegou a editar uma nota técnica esclarecendo que não há limite de idade gestacional para realização do aborto legal. O documento, no entanto, foi alvo de críticas de parlamentares conservadores e acabou suspenso no dia seguinte pela ministra da Saúde, Nísia Trindade.
No primeiro mês do governo Lula, o ministério anunciou a revogação uma portaria da pasta que dificultava o direito de mulheres vítimas de estupro ao aborto. A regra instituída pelo governo Bolsonaro obrigava os profissionais da saúde a comunicarem a polícia, mesmo sem o aval da mulher, casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação. Na época, especialistas no tema criticaram a norma da gestão bolsonarista por entender que a orientação poderia constranger as vítimas e fazer com que evitassem buscar o direito ao aborto.