"Lei nenhuma acaba com o feminicídio", diz advogada-hit da internet

Fayda Belo faz sucesso nas redes sociais usando linguagem simples para falar sobre violência de gênero e direitos das mulheres

20 set 2023 - 05h00
"O Estado, ainda hoje, contribui para a desigualdade e a violência contra a mulher", afirma criminalista
"O Estado, ainda hoje, contribui para a desigualdade e a violência contra a mulher", afirma criminalista
Foto: Divulgação

Carismática, falante e muito bem humorada, a advogada criminalista Fayda Belo acumula mais de dois milhões de seguidores somando as contas do TikTok e do Instagram. A cada dia chegam novos fãs, interessados em seus vídeos esclarecedores sobre temas que vão de racismo a LGBTfobia, mas principalmente violência contra a mulher. 

Capixaba de Cachoeiro de Itapemirim, Fayda acabou de lançar o livro "Justiça para todas - O que toda mulher deve saber para garantir seus direitos" (Ed. Planeta), uma espécie de manual com conceitos e dicas mais aprofundadas - porém em linguagem acessível - dos conteúdos que compartilha na internet. 

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Aos 41 anos de idade, mãe de dois filhos e avó de dois netos, Fayda se define como militante e já foi chamada de "Annalise Keating brasileira", menção à professora de Direito icônica interpretada pela atriz Viola Davis na série "How To Get Away With Murder". Com uma infância marcada por dificuldades, preconceitos e o abandono do pai, a criminalista reverencia a memória da mãe como peça fundamental para a educação que lhe permitiu se tonar a influência que é hoje e atuar em defesa das mulheres em todo o Brasil - até mesmo sem cobrar (pro bono) quando a vítima não tem recursos financeiros.

Em entrevista ao Terra NÓS, ela fala um pouco mais sobre seu trabalho e suas ideias a respeito do combate à violência de gênero no Brasil.

Como o seu livro pode ajudar as mulheres?

Há muito tempo milito sobre questões de gênero e busco expor ideias e conceitos com uma linguagem acessível, que possa ser entendida e assimilada por todo mundo. A forma como as leis são abordadas, o chamado "juridiquês", é compreensível apenas entre advogados, promotores e juízes. É um vocabulário que exclui a mulher, em vez de incluí-la e informá-la. O meu livro segue a lógica da inclusão, pois tem uma linguagem mais simplória, ilustrações e exemplos práticos. Meu objetivo foi fazer com que as leitoras entendam quais são e como acontecem as violências contra a mulher, descubram quais são seus direitos e, principalmente, saibam como pedir ajuda.

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Com a primeira-dama Janja: livro traz conceitos e dicas mais aprofundadas sobre como identificar e combater a violência de gênero
Foto: Reprodução/Instagram/@faydabelo

Recentemente o filme "Ângela" relembrou o impacto que o assassinato da socialite Ângela Diniz pelo namorado Doca Street, em 1976, causou na sociedade brasileira e a luta feminista para acabar com o conceito do "crime passional em legítima defesa da honra". Hoje temos leis de proteção às mulheres, mas os números de feminicícios e estupros são assustadores e crescentes. O que explica essa equação aterradora?

O primeiro ponto é que o machismo no Brasil é um problema histórico. O Brasil foi colonizado pelos portugueses, que trouxeram para cá seu modelo cultural, social e familiar baseado no patriarcado, ou seja, estruturado a partir do homem no papel de líder. Também deve-se levar em conta a herança cristã da colonização na qual a igreja reforça submissão como uma obrigação feminina. Então, é como se o poder público com as benção da Igreja dissessem aos maridos: "a mulher é sua, faça o que quiser com ela". É preciso lembrar, ainda, que as leis foram criadas por homens, para homens e para favorecê-los. E para oprimir mulheres, para reforçar que o homem é o líder, que ele manda, e a mulher é nada. Lei nenhuma acaba com o feminicídio porque quem julga são os homens. As leis podem ajudar a reprimir a violência? Sim, mas não podem evitar que o corpo sofra. Precisamos de uma educação antimachista e antimisógina em todos os ambientes: em casa, na família, na escola, nas empresas. O Estado, ainda hoje, contribui para a desigualdade e a violência contra a mulher.

Diversos casos de investigações de feminicídios ligados à violência patrimonial têm ocupado espaço na mídia ultimamente. O que você vê em comum neles?

Mais do que dinheiro, o que está por trás de um feminicício envolvendo violência patrimonial contra a mulher é a inversão da lógica de poder nos relacionamentos. Se uma mulher tem dinheiro, posses, um cargo maior ou melhor condição do que o parceiro, trata-se de um cenário oposto ao desejado e valorizado pelo patriarcado. O pior é que, apesar de ser tipificada na Lei Maria da Penha, não existe uma pena para a violência patrimonial. Segundo o artigo 181 do Código Penal, é isento de pena quem comete delitos contra o patrimônio em prejuízo do cônjuge. E o Código Penal vigente foi feito por quem? Pois é, homens.

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Adiantariam leis mais severas sem o devido acolhimento da vítima?

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Não, é como eu falei: lei nenhuma impediria a violência contra a mulher, porque tentam de toda forma arrumar uma brecha para que o agressor não seja preso nem receba uma pena. É necessário que o corpo humano que atua em delegacia, no judiciário, no Ministério Público entenda que é ator para ajudar essa mulher. Capacitação e educação pautada na equidade de gênero e na visão da mulher como uma pessoa podem ajudar no trabalho de base, porque os crimes contra a mulher também não se resolvem com a prisão do agressão. É preciso impedir que a violência exista.

Como você encara o fato de que muitas vítimas se sentem culpadas pelas violências sofridas?

Esse é mais um reflexo da sociedade machista em que vivemos e de que é preciso educar a sociedade para ver a mulher como pessoa, não um corpo, um objeto. As vítimas precisam ser olhadas como são: vítimas. A sociedade não pode ficar procurando qual a parte de culpa dela na violência sofrida, com falas do tipo "quem mandou beber?". Isso é outro tipo de violência. A delegacia ainda é um ambiente hostil que contribui para a subnotificação de estupros, por exemplo. Temos leis ótimas, o problema é quem as aplica e como faz isso.

Diante desse cenário, qual a importância da denúncia?

Ela segue relevante para a punição do agressor, o fim do ciclo da violência e a extração de dados para a criação de melhores políticas públicas que defendam e protejam a mulher. Sabemos que os dados são subnotificados e que a realidade da violência contra a mulher é ainda mais terrível do que as estatísticas divulgadas. Denunciar ajuda a romper a cultura que tenta normalizar e justificar as agressões e mostra que elas não podem passar despercebidas aos olhos da lei e que existe punição para isso. Para que o poder público possa entender a quantidade de violência, quais tipos e sobre quais mulheres estão recaindo, ele precisa de dados. Isso tudo é ainda mais fundamental para as mulheres negras, que são duplamente vulneráveis.

Fayda em uma de suas muitas palestras pelo Brasil: linguagem acessível e sem "juridiquês" para a compreensão de toda a população
Foto: Reprodução/Instagram/@faydabelo

Você já sofreu ameaças por causa de seu trabalho?

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Não, nada grave. O que sofri optei por resolver no fórum mesmo, amparada por leis. Com toda a exposição atual é claro que tenho um pouco de receio, mas sou cuidadosa e o que falo, falo com muita lucidez.

O que você gosta de fazer nas horas vagas?

Assistir vídeos de gente espremendo cravos! (risos) Sério, é muito relaxante, me distrai!. Mas não é só isso, claro, nos meus raros momentos off-line eu gosto de ver filmes e curtir os meus netinhos de quatro anos e um mês. 

Em seu livro há uma dedicatória muito bonita para a sua mãe. Qual é a história de Maria Efigênia Belo?

Ai, depois de dar risada, chegou o momento de chorar! Maria Efigênia Belo é meu exemplo de vida, minha heroína, meu livro é para ela. (voz embargada) Meu pai um belo dia resolveu vender nossa casa com tudo o que tinha dentro e simplesmente foi embora. Maria Efigênia foi mãe solo e fez o possível e o impossível para que eu estudasse, porque entendia que somente a educação poderia dar a chance de mudar não só a minha vida, mas através dela as vidas de outras pessoas também. Ela ia à escola pedir lápis, cadernos, mochila, o que fosse preciso para que eu pudesse estudar. Ela partiu quando eu tinha 15 anos de idade e meu trabalho é uma forma de honrá-la. Enquanto eu tiver fôlego, vou lutar para evitar que nenhuma mulher fique para trás.

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Fonte: Redação Nós
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