O Brasil tem hoje mais de 50 mil crianças com os nomes de duas mães na certidão de nascimento. O número oficial divulgado no ano passado pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg/BR) foi o de 47.124 registros em todo o país e contemplou o período de 2013 e fevereiro de 2022.
Conforme dados atualizados fornecidos ao Terra NÓS pela Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (ARPEN Brasil), o ano de 2022 totalizou 5.017 registros de bebês com duas mães. O levantamento atual da ARPEN Brasil, contabilizado até julho de 2023, indica 2.918 registros - o que representa 13,7 registros por dia.
No Dia do Orgulho Lésbico, celebrado hoje, 19, o fato de ter mais de 50 mil crianças com os nomes de duas mães na certidão de nascimento merece ser exaltado por jogar luz à realidade da dupla maternidade em casais lésbicos - e todos os desafios que envolvem a questão.
É importante ressaltar, porém, que os dados não indicam que todos os registros tenham sido feitos por casais de mulheres lésbicas. A legislação brasileira permite o registro de crianças para além de um casal com o reconhecimento da responsabilidade socioafetiva, que inclui mais uma pessoa a certidão de nascimento. É o caso de uma certidão com o nome do pai, da mãe biológica (viva ou não) e da mãe socioafetiva, ou seja, aquela que passou a se incubir ou também se incube dos cuidados com a criança.
Outro fato relevante a se destacar: a quantidade de crianças criadas por casais lésbicos no Brasil é provavelmente bem maior, uma vez que estamos lidando com números de certidões oficiais. Há todo um contingente de meninos e meninas em lares homoafetivos com o nome de apenas uma mãe - na grande maioria das vezes, a biológica - no registro.
Como funciona o registro da criança
A advogada Luisa Poio Oliveira Bartolomeu, representante do grupo de afinidade LGBTQIAPN+ do grupo TozziniFreire Advogados, explica que não é mais indispensável que o casal de mulheres seja casado oficialmente no papel para registrar o bebê em cartório, mas que ao menos uma certidão de união estável é solicitada. Além disso, é obrigatória a apresentação da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e um documento com firma reconhecida do diretor técnico da clínica de reprodução assistida que ateste a Fertilização in Vitro (FIV) ou a inseminação artificial. "Embora a reprodução assistida seja muito cara no Brasil, a inseminação caseira, também chamada de autoinseminação, pode ser um entrave na hora de colocar no registro o nome da mãe que não gestou o bebê", diz.
Na falta de uma regulamentação específica, o registro somente poderá ser feito em nome da parturiente, cabendo à esposa ou companheira invocar a tutela jurisdicional (de um juiz) para pleitear a inclusão da dupla parentalidade.
Casais que não formalizaram o relacionamento no papel, em geral, precisam entrar com uma ação judicial comprovando a união estável para solicitar o registro da criança.
Atualmente, tramita na Câmara dos Deputados o PL 5423/20, de autoria da deputada Maria do Rosário (PT-RS), que visa alterar a legislação vigente para permitir que casais homoafetivos tenham o direito ao registro de dupla maternidade ou paternidade de seus filhos, independente do estado civil. No momento, é comum que apenas um dos membros do casal seja registrado como pai ou mãe, deixando o outro como pai ou mãe socioafetivo, sem qualquer vínculo legal com a criança. É uma lacuna jurídica que pode gerar insegurança e prejudicar a garantia de direitos fundamentais.
Licença-maternidade e licença-paternidade
Para a mãe que gesta, a legislação prevê 120 dias de licença-maternidade. Já a outra mãe tem direito aos cinco dias da chamada licença-paternidade, que não conta com remuneração. "Em caso de adoção, as duas podem escolher entre si quem vai ter direito à licença-maternidade e quem vai ficar com os cinco dias de direito da licença-paternidade. Essas licenças são válidas para a adoção de crianças de qualquer idade, pois a lei não impõe mais o limite de idade", conta Clara Pacce Pinto Serva, sócia e Head de Empresas e Direitos Humanos do TozziniFreire Advogados.
Em caso de separação do casal, os trâmites são os mesmos válidos para um casal heterossexual, inclusive no que diz respeito à pensão e à guarda da criança. "No entanto, é essencial ter em mente que o meio judiciário é conservador e é possível que a mãe biológica seja favorecida em alguns apectos", diz Luisa, que informa ainda que, em caso de divórcio durante a gestação, a gestante tem direito a pensão de alimentos gravídicos.
A seguir, contamos as histórias de dois casais de mulheres que fizeram questão de registrar seus filhos com os nomes das duas mães e que contam um pouco sobre suas vivências com a dupla maternidade.
"Decidimos trabalhar com direitos LGBT após tantos desafios"
Isabelle Nobre, 33 anos, coordenadora de assuntos educacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e a educadora Anik Arruda, 32, cursaram Direito na mesma faculdade, na mesma época, e nunca se esbarraram. O Tinder, no entanto, as uniu e lá se vão quase cinco anos de um relacionamento feliz e, no momento, embalado por cantigas de ninar para Zuri e Nilo, de apenas dois meses.
"Têm sido dias muito cansativos, mas muito intensos", conta Isabelle, por telefone. Anik, que conversou com Terra NÓS via viva-voz enquanto amamentava os gêmeos, foi quem gestou os bebês.
O casal optou por engravidar via FIV, mas o alto valor da técnica era um empecilho para a realização. Foi quando souberam da possibilidade da ovodoação compartilhada. Aprovado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), o método consiste em uma mulher que está passando pela FIV dividir seus óvulos com outra mulher que também passa pelo procedimento e, dessa forma, os gastos são divididos.
"É uma estratégia que viabiliza a reprodução assistida para muitas famílias que, como a nossa, não podiam arcar com todos os altos custos dos procedimentos", diz Isabelle.
Foram quase dois anos de tentativas em que Isabelle, a doadora dos óvulos, passou por uma bateria de exames e injeções de hormônios, além de enfrentar a anestesia geral para a punção e uma série de efeitos colaterais. "Os protocolos, nesses casos, parte do pressuposto de que a mulher tem problemas de fertilidade, o que não era o caso. Para se ter uma ideia, a Isabelle teve 27 óvulos doados. Há uma superestimulação hormonal nessas circustâncias, já que não há regulamentação sobre quantidade, para que a mulher doe o máximo possível. É uma realidade que desconsidera totalmente as necessidades das mulheres lésbicas e de pessoas trans", enfatiza Anik, ressaltando que os acontecimentos as levaram a decidir pela especialização em direitos da comunidade LGBTQIAPN+.
Na hora de escolher o doador de esperma, o ponto da diversidade também mereceu atenção. "Eu queria que o doador fosse uma pessoa não branca, preferencialmente indígena, mas não havia nenhum doador indígena cadastrado. Sou filha de pai preto e mãe indígena e me considero preta. No fim, acabamos escolhendo um doador indiano", relata Anik.
Enquanto se vêem às voltas com as descobertas da maternidade, as duas compartilham suas experiências no perfil do Instagram @duplamaternidadecritica e refletem, juntas, sobre os próximos passos da organização da rotina. Isabelle tirou a licença-paternidade; já Anik, autônoma, deve seguir trabalhando em home office.
"A mãe que não gesta enfrenta mais preconceito"
Thayla Lemos, 28 anos, e Raquel Gomes, 26, são técnicas de enfermagem e se conheceram no hospital onde trabalhavam. Elas moram na capital paulista e estão juntas há cinco anos. Quando se conheceram Raquel já era mãe de Richard, hoje com 10 anos, e Thay nem pensava em ser mãe até o dia em que foi acometida por uma vontade louca de ter um filho e vivenciar a experiência de gestar. Optaram pela inseminação artificial, por ser um pouco mais em conta do que a FIV e pelo desejo de deixar tudo formalizado, e o processo todo levou cerca de um ano.
"Em plena pandemia, nos viramos e arrumamos quatro empregos para conseguir arcar com os custos", relembra Raquel, também chamando a atenção para o quanto os tratamentos reprodutivos são excludentes no Brasil, principalmente levando-se em conta os recortes de raça e classe social.
Hoje a pequena Cecília tem um ano e trouxe ainda mais felicidade para o casal, que, passado o estranhamento inicial das famílias com o relacionamento das duas, vive uma rotina doméstica em harmonia. "Mamãe Thay cuida da casa e mamãe Raquel das tarefas com as crianças", explica Raquel, que relata ter adotado protocolo de indução à amamentação para também amamentar a filha - Isabelle, parceira de Anik, fez a mesma coisa.
A única pedra no caminho desse dia a dia compartilhado na página do Instagram @duplamaternidade.real é, como costuma ocorrer na vida de qualquer pessoa LGBTQIA+ (sobretudo no Brasil), o preconceito. No entanto, mais do que olhares tortos e preconceituosos sobre a existência de uma criança com duas mães, o que mais incomoda o casal é invalidação do papel de Raquel pelo fato dela não ter gestado a Cecília. "É comum que algumas pessoas desmereçam a minha maternidade, afirmando que só a Thay é a 'mãe de verdade' ou se dirigindo somente à ela para perguntar, por exemplo, se a Cecília dorme ou se alimenta bem", diz Raquel.
Filha de pais evangélicos, ela faz questão de enaltecer o apoio recebido pela mãe quando esta, questionada se deveria celebrar a chegada de uma neta que não nasceria da barriga de sua filha, respondeu: "É minha neta, sim, não importa da maneira que está vindo. E ponto final".