Uma major travesti da Polícia Militar de Santa Catarina está sendo processada e será investigada pelo o que a corporação considera ser "supostas condutas consideradas inadequadas". A oficial Lumen Muller Lohn, no entanto, afirma desconhecer a justificativa para a abertura do procedimento e relata acreditar ser uma medida discriminatória. Ela iniciou a transição de gênero em 2022, mas já está na corporação desde 1998.
Nesta segunda-feira, 24, o governador Jorginho Mello (PL) determinou, após pedido da PM, a formação do Conselho de Justificação para avaliar a“capacidade moral e profissional” da major, conforme publicado no Diário Oficial de Santa Catarina. Ao Terra, a PM nega que o procedimento tenha relação com identidade de gênero (leia posicionamento completo mais abaixo).
Conforme determina a Lei nº 5.836, a apuração do Conselho de Justificação é um procedimento administrativo para avaliar a conduta profissional de militares, que pode resultar no arquivamento do processo, mas também na aposentaria compulsória ou ainda na expulsão da oficial da instituição.
À reportagem, a advogada Mariana Lixa, que representa Lumen, afirma que o processo foi instaurado antes de ser oficializada a transição da oficial, em janeiro. Mas explica que a transição da major começou antes, em setembro, então já era de conhecimento da corporação desde os últimos meses de 2022. A Lei nº 5.836 prevê que o processo deve ser concluído em até 120 dias, contados a partir da instauração do Conselho de Justificação.
"A corporação enviou o processo ao governador em dezembro, antes da emissão do RG feminino [da major], mas o processo dela de transição começou em setembro".
Ainda segundo a advogada, a major ainda não foi intimada formalmente sobre o andamento do processo, então a defesa ainda não tem conhecimento do motivo pelo qual a oficial está sendo submetida ao Conselho de Justificação.
"A defesa quer crer que [o processo] não tem relação com identidade de gênero, pois isso não seria compatível com a seriedade da corporação, mas a identidade de gênero dela é algo que não pode ser ignorado com relação a este processo. O histórico profissional da major não traz nada grave que possa justificar o Conselho. Os boletins reservados dão conta de um processo administrativo do qual já sofreu e foi punida por 24h. No entanto, se ela já foi punida não poderia ser de novo, então isso causa a defesa uma certa estranheza", disse Mariana.
Major acredita em medida discriminatória
Ao Terra, a major afirmou que acredita que o processo seja uma medida discriminatória. "Eu fiquei chocada com a ideia do processo, não imaginava que chegaria a esse ponto. Também não tem nenhum fato que eu consiga visualizar que o justificaria, exceto talvez a minha transição. Eu comecei a transição em setembro do ano passado e o processo foi iniciado em novembro, então até a proximidade das datas me deixa com um pé atrás em relação a isso", disse ela.
Segundo a oficial, ela nem sabe exatamente do que terá que se defender, porque não há nenhum apontamento claro no processo aberto pela PM. "Não há nenhum apontamento, como por exemplo 'major fez tal coisa', 'major não se portou de tal forma'. Não existe nada disso, é simplesmente "vamos avaliar os requisitos morais dela". Então não consigo enxergar de outra forma ou desassociar a ideia de que isso só começou depois do início da minha transição", explicou.
Deputado parabenizou governador e citou identidade de gênero
Em suas redes sociais, o deputado estadual Jessé Lopes (PL-SC) parabenizou o governador do Estado, devido a medida assinada por Jorginho Mello que determina que a PM "avalie a sua capacidade moral e profissional" da major. Na publicação, o parlamentar citou a identidade de gênero da oficial, o que disse não ser "compatível com a instituição" e afirmou que a PM é um "lugar de respeito". O deputado foi alvo de críticas após publicar mensagem discriminatória contra a comunidade LGBTQI+.
"Homem entra na polícia militar, e, dentro da polícia, começa o processo de transformação de sua aparência. Algo que, por si só, já não é compatível com uma instituição que precisa demonstrar força, coragem e impor RESPEITO [sic]", escreveu o deputado. "Se você for homossexual, seja um homossexual “MACHO”, de respeito, que RESPEITA e SE DÁ o respeito. A polícia militar não é lugar de causar! [sic]”, disse também o parlamentar.
O que diz a Polícia Militar
Em nota, a Polícia Militar de Santa Catarina informa que o processo não tem relação com identidade de gênero, e que refere-se a conduta profissional da major. Confira o posicionamento na íntegra:
"Sobre a decisão do Governo do Estado em determinar a constituição do Conselho de Justificação para analisar a conduta da Major PM Lumen Muller Lohn, cabe ressaltar que o mesmo foi instruído em virtude de fatos relatados e apurados a respeito da sua conduta profissional e tramita em regime de sigilo, preservando e respeitando a privacidade da Major.
A Polícia Militar de Santa Catarina (PMSC) destaca que o processo originou-se na administração anterior em virtude de relatos de condutas profissionais consideradas inadequadas e que estão sendo apuradas no decorrer do processo.
O encaminhamento da documentação para abertura do Conselho de Justificação foi enviada ao Governo do Estado em 21 de dezembro de 2022. A comunicação da policial militar sobre sua transição de gênero ocorreu somente em 23 de janeiro de 2023.
Portanto, posterior aos encaminhamentos para abertura do Conselho de Justificação (21 de dezembro de 2022). Ressalta-se que a avaliação do Conselho de Justificação é balizada pela Lei Nº 5277, de 25 de novembro de 1976, que dispõe sobre a constituição e funcionamento dos Conselhos de Justificação da Polícia Militar e dá outras providências.
Com isso, ressalta-se que a avaliação limita-se ao previsto na forma da lei. O Conselho de Justificação é composto de três oficiais da ativa de posto superior ao do acusado. O membro mais antigo do Conselho de Justificação, sempre oficial superior da ativa, é o Presidente, o que se lhe segue em antiguidade é o interrogante e relator, e o mais moderno o escrivão.
Não podendo integrar o Conselho de Justificação o oficial que formulou a acusação, oficiais que tenham entre si, com o acusador ou com o acusado, parentesco, consangüíneo ou afim na linha reta, ou até quarto grau de consangüinidade colateral, ou de natureza civil ou os oficiais subalternos.
À Major Lumen, Justificante do Conselho, é assegurada ampla defesa, tendo ela, após o interrogatório, prazo de 5 (cinco) dias para oferecer suas razões por escrito, devendo o Conselho de Justificação fornecer-lhe o libelo acusatório onde se contenham com minúcias, o relato dos fatos e a descrição dos atos que lhe são imputados. Ela deve estar presente a todas as sessões do Conselho de Justificação, exceto à sessão secreta de elaboração do relatório. O prazo para conclusão dos trabalhos do Conselho é de 30 dias."