O primeiro capacitismo que a influenciadora Mariana Torquato sofreu foi assim que deixou o quentinho da barriga de sua mãe. A mãe, com 39 anos à época, teve uma gravidez considerada de risco pelos médicos que a acompanharam. Esses mesmos médicos, quando viram que o bebê havia nascido sem um braço, arbitrariamente doparam a mãe. Acharam que seria a melhor solução para que não tivesse de lidar com a deficiência da filha.
O capacitismo tirou de uma mulher o direito de ser a primeira a encontrar seu bebê após gestá-lo por nove meses. E o mesmo capacitismo continuou permeando a vida de Mariana em todas as fases que viriam na sequência.
Na infância, ela já tinha de cor as diversas e mirabolantes respostas, ensinadas pelos pais, para a pergunta que insistiam em fazer: o que aconteceu com você?
Os pais criaram teorias coloridas e brilhantes para que a filha não sofresse com a insistência das pessoas em questionar seu corpo. Ao mesmo tempo, dentro de casa, Mariana crescia com todo estímulo da família, que em momento algum inviabilizou sua capacidade de fazer o que quisesse: começou a engatinhar aos nove meses, fez natação, balé e jazz.
A mãe de Mariana sempre buscou colégios que tinham a inclusão como valor, e se colocou de forma atuante durante toda a juventude da influenciadora para que ela ocupasse posições de destaque. Na escola, pressionava os professores para que a filha fosse a primeira da fila em apresentações e para que nunca duvidasse de sua capacidade.
“A professora, uma vez, criou uma competição entre os alunos: quem amarrasse melhor os sapatos ganharia uma caixa de bombons. Cheguei em casa animada para aprender, e minha mãe entrou na onda. Em momento algum me disse que eu não faria tão bem quanto alguém que tem duas mãos, pelo contrário: me incentivou e eu treinei tanto que fui a primeira a amarrar os sapatos entre os colegas. Ganhei a caixa de bombons.”
“Ninguém focava na minha deficiência”, conta Mariana ao Terra NÓS.
Fora de casa, entretanto, a receptividade não era igual ao que ela vivia em casa. “Sempre tive pessoas que me colocavam para baixo, o capacitismo faz parte da minha vida. Eu tinha uma prima que cursava medicina, e queria ser como ela. Um dia, disse na escola que queria ser cirurgiã, e uma criança me disse que não tinha como eu ser cirurgiã porque tenho só um braço. Eu acreditei naquilo por muito tempo.”
“Foram me dizendo que eu não era capaz e eu fui acreditando. Ainda mais na infância e na adolescência, períodos em que a gente está construindo nossa autoestima e noção sobre a vida. Com o tempo, fui desmistificando o que colocavam como regra para mim. E também o que eu mesma colocava, por acreditar que não pertencia a nenhum espaço.”
Pioneira
Mariana foi a primeira influenciadora focada em pautas de pessoas com deficiência do Brasil. Até hoje, seu canal no YouTube, “Vai Uma Mãozinha Aí”, é o mais seguido sobre o tema.
Ela começou a falar sobre deficiência em 2016, quando se chocou com uma campanha da Vogue para estimular a venda de ingressos para os Jogos Parapanamericanos.
A revista estampou em suas páginas artistas sem deficiência photoshopados como atletas paralímpicos. “Aquilo foi o suprassumo da falta de noção e de representatividade. Aquilo mostrava que a deficiência era a única coisa que as pessoas viam naqueles atletas. Como se essas pessoas não fossem indivíduos, e suas deficiências pudessem ser representadas por qualquer um”.
Formada em administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Mariana prestou um concurso público. Sempre ouviu da família que os concursos seriam boas opções, já que garantiriam estabilidade e tinham cotas para pessoas com deficiência. “Me diziam que no funcionalismo público eu teria menos chances de sofrer assédio”. Tinha um canal no YouTube, mas não se sentia encorajada para botar a cara na internet. Essa revista foi o estopim para que a coragem aparecesse.
“Meu primeiro vídeo foi sobre isso, e lembro que teve 700 visualizações no primeiro dia. Ali, entendi que existia um interesse das pessoas sobre esse assunto – coisa que não imaginava”, conta.
Pensava que não se falava sobre capacitismo porque ninguém se interessava, mas entendi que, na verdade, existia um filtro na mídia tradicional. Nesse filtro, pessoas como eu não passam.
O canal de Mariana se tornou o maior sobre deficiência no Brasil, e foi algo orgânico. À medida que os meses passavam, ela foi percebendo que havia pessoas – muitas pessoas – que se identificavam com seu conteúdo, e é a isso que ela atribui a força para continuar. “Quando fiz o vídeo sobre o que é capacitismo, recebi diversas mensagens de pessoas dizendo ‘então o que eu passo tem nome?’. Era um nicho esquecido”.
Mesmo quando o canal passou a bombar, Mariana não abandonou o trabalho. Ser influenciadora ainda era um nicho novo, ainda mais sobre deficiência. “Não tinha em quem me inspirar”, afirma. Até que foi galgando seu espaço e se tornou a primeira influenciadora com deficiência a assinar uma parceria publicitária.
Adolescência e seus males
Natural de Florianópolis, em Santa Catarina, Mariana conviveu com a pressão estética desde muito cedo. Não somente sua deficiência era colocada em pauta, mas todo seu corpo. “Em Florianópolis, existe esse culto ao corpo perfeito. Quando comecei a engordar, na adolescência, me senti ainda mais deslocada do universo. Achava que só com plásticas poderia ser bonita como as mulheres que via”. A construção da sexualidade, para ela, foi bastante difícil.
Me comparava com outras mulheres e pensava ‘quem vai achar bonito alguém que não tem um braço?’. Foi muito difícil entender que uma mulher como eu também pode ser sexy.
O primeiro namorado, a quem Mariana descreve como querido e compreensivo, foi importante para que ela quebrasse algumas barreiras de comparação e fortalecesse sua autoestima. Autoestima essa que, segundo ela, só começou de fato a ser construída a partir de seus vinte anos.
“Fui me descobrindo como pessoa capaz e entendendo, dia após dia, que eu era muito mais parecida com uma pessoa sem deficiência do que as pessoas imaginavam. Cria-se a ideia equivocada de que há um abismo entre esses mundos, mas isso não existe. É um mundo similar. Mas demorei para entender isso, e os psicólogos que me acompanhavam também. É um tema complexo que, por muito tempo, foi jogado para debaixo do tapete. Fez falta na minha vida trabalhar isso desde cedo, e fez falta também exemplos de pessoas como eu.”
Não que ter toda essa compreensão seja suficiente para que não haja dias ruins.
“A busca pelo autoestima é uma luta diária. Não é porque apareço linda na internet que me sinto maravilhosa todos os dias. É uma questão diária, um dia de cada vez, principalmente quando você tem um corpo que é alvo de olhares por todos os motivos”, termina.