Por várias noites, a psicóloga Eduarda*, de 35 anos, acordou de madrugada com seu companheiro praticando atos sexuais com seu corpo. A falta de consentimento, uma vez que ela dormia durante o sexo, parecia não ser impeditivo para o parceiro. Se ela não acordasse, ele obteria seu próprio prazer e voltaria a dormir em seguida.
Mas, àquela altura, Eduarda não entendia as situações como violências sexuais.
"Ocorreram diversas situações em que eu acordava e já estava acontecendo alguma coisa (...). A gente acaba achando que é o parceiro, um cara legal, e não foi violência, só uma investida insistente", relata.
A percepção veio aos poucos, junto com outras condutas invasivas por parte do homem. A gota d'água, no entanto, foi em uma noite que a psicóloga acordou de madrugada e percebeu que, mais uma vez, o homem estava em cima dela, forçando sua mão no órgão genital dele.
A diferença, ali, é que ela tinha tomado um remédio forte para insônia e estava grogue - e ele sabia disso.
"Percebi naquele momento que meu consentimento pouco importava para ele. Não era algo que ele começou e queria que eu participasse. Me sentia como um buraco que existia apenas para satisfazê-lo", desabafa.
Na manhã seguinte, a psicóloga chegou a duvidar de si mesma sobre o acontecido e, por isso, demorou cerca de uma semana e meia para tomar uma atitude. "Quando acordei, não sabia se era sonho ou realidade, de tão grogue que estava", relembra. "Demorei dias pensando nisso, buscando memórias para ter certeza que isso tinha acontecido".
Confrontado, o homem alegou que também estava dormindo. "Disse que era sonâmbulo e pediu desculpas, mas não era uma desculpa que fizesse com que isso acabasse", diz.
O que aconteceu com Eduarda e com outras 641 milhões de mulheres, entre 15 e 24 anos ao redor do mundo, conforme mostra relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) de 2021, tem nome: estupro marital. A violência ocorre quando um parceiro – namorado, noivo, marido – pratica o sexo sem o consentimento da companheira.
Violência sexual dentro de relacionamentos
"Historicamente, havia a ideia de que dentro do casamento a mulher tinha a obrigação de estar disponível sexualmente, mas estupro é estupro, não importa em que relação ela se constitua", aponta Marina Ruzzi, advogada especializada em gênero e diversidade sexual.
Não há legislação específica para o estupro marital, cometido dentro de uma relação estável. No entanto, este tipo de crime pode se enquadrar dentro da Lei Maria da Penha, que trata de casos relacionados à violência doméstica. "É um agravante, ou seja, considerado mais grave quando é cometido pelo parceiro", completa.
Segundo a advogada, o caso de Eduarda também entra como estupro de vulnerável, já que ela não estava em condições de consentir com a prática sexual.
"É muito difícil para essas vítimas denunciarem. Geralmente, demora muito e perde-se a prova material (...). Mesmo assim, o depoimento da vítima é considerada a principal prova nesses casos", afirma Ruzzi.
"Tenho medo de futuras relações"
Eduarda, que prefere preservar sua identidade, decidiu denunciar o companheiro à polícia e se separar dele definitivamente. Em entrevista ao Terra, ela conta que precisou fazer o papel de psicóloga para si mesma, como se estivesse orientando alguma amiga.
"Precisei tirar esse peso das minhas costas e contar o que aconteceu. Se reconhecer como vítima é doloroso e passar por todo esse processo de provar o que aconteceu também é, mas precisei fazer isso", desabafa a vítima.
Após se entender como vítima, se separar do agressor e denunciá-lo, Eduarda ainda sente as sequelas da violência sexual ao qual foi submetida por diversas vezes. Hoje, ela faz acompanhamento psicológico e segue tratamento com antidepressivos e remédios para a insônia.
O medo de entrar em uma nova relação também é presente. A dificuldade em se ver num relacionamento é resultado do receio de ser vítima mais uma vez.
"Tenho medo de futuras relações, de ter alguém na minha vida e confiar de novo", diz a psicóloga.
Eduarda admite que, mesmo sendo um processo doloroso, o que a ajuda a seguir em frente é ter denunciado o ex-companheiro.
"Ali senti que o nó na garganta, o peso da violência foi tirado de mim (...). Falei que isso aconteceu e que ele tem que ser responsabilizado. Quem vai julgar se deve ou não, é um terceiro. Não é mais meu papel", acrescenta.
* O nome da vítima foi alterado para preservar sua identidade.
**Com edição de Estela Marques.