Este texto foi publicado no dia 14 de abril de 2022 e atualizado no dia 11 de agosto de 2022
Depois do quinto filho, a cuidadora de idosos Monica (nome fictício), na época com 32 anos, quis fazer uma laqueadura para não engravidar novamente. O risco de morrer no parto, os graves problemas financeiros e as mudanças no corpo motivaram a decisão.
No entanto, alegando questões religiosas, o marido a impediu de fazer o procedimento.
"O velho testamento diz 'casai e multiplicai-vos'. Muitos irmãos pregavam com base nisso e meu marido seguia o mesmo pensamento. Ele me disse que eu não faria a laqueadura e quis saber o porquê do meu desejo pelo procedimento. Eu entendi aquela situação como um 'eu que mando' e fiquei passada", contou ela à BBC News Brasil.
Monica teve mais um filho, totalizando três homens e três mulheres.
A Câmara dos Deputados aprovou em março, e o Senado no dia 10 de agosto, um projeto de lei que derruba a obrigação de consentimento entre marido e mulher para a realização de laqueadura, no caso delas, e da vasectomia, no caso dos homens.
O texto também prevê a permissão da laqueadura durante o parto, para juntar os dois procedimentos, minimizando sequelas decorrentes das cirurgias.
O projeto também prevê a diminuição de 25 para 21 anos a idade mínima para fazer o procedimento. Para virar lei, ele ainda precisa ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL).
Caso essa lei já tivesse sido aprovada há algumas décadas, Monica, hoje com 43 anos, acredita que teria feito outras escolhas.
"Vivemos em tempos diferentes. Mas se eu pudesse olhar no espelho, eu diria para mim mesma: 'vai estudar e buscar uma profissão. Vai se amar mais ainda, se valorizar'. Eu também não teria me casado tão cedo. Teria cuidado mais de mim mesma", afirmou.
Monica conta que o casal discutiu diversas vezes por conta das constantes negativas do marido em permitir a laqueadura. Ela lembra que, depois de muitas brigas, ele finalmente aceitou receber atendimento médico para fazer uma vasectomia. Mas, sem conseguir agendar uma consulta no sistema público de saúde, o procedimento não foi realizado "e o sexto filho veio".
Deixava de comer para dar leite aos filhos
Moradora de uma favela de São Paulo, Monica diz que a família enfrentou dificuldade financeira e chegou a "faltar alimento".
"A gente passou por muita dificuldade financeira. Com tanta criança em casa na época, só o meu marido, que é porteiro, podia trabalhar. A gente teve mais filhos e a situação começou a apertar. Passamos a ter que escolher: a gente comia ou alimentava os filhos", afirmou.
Na época, o marido de Monica começou a trabalhar em dois empregos para complementar a renda. Mesmo assim, enquanto a favela se desenvolvia e a maior parte dos moradores passou a erguer casas de alvenaria, a família continuou vivendo num barraco de madeira.
"Imagine não ter leite para dar aos filhos. A gente usava só roupas doadas. As contas apertaram a ponto de faltar alimento. Algumas vezes, fomos à casa da minha cunhada para encher a mamadeira com leite para dar aos nossos filhos com fome", lembrou a cuidadora.
Depois do quarto filho, contou Monica, começaram as primeiras discussões com o marido por conta da ideia de fazer uma laqueadura. Ele ficou desempregado e o que salvou a família de uma situação ainda mais desesperadora de fome foi a renda que o filho mais velho conseguiu, após ser contratado como atendente em uma banca de jornal.
"Ele (filho) praticamente sustentou a nossa casa. Meu marido passou a usar o carro que a gente tinha para fazer carreto e eu fiz bicos faxinando e cuidando de crianças. Fiz o que pude pelos meus filhos."
Hoje, ela conta que a família está numa situação bem melhor, com a maior parte dos filhos trabalhando.
Ela acredita que esse projeto para realizar a laqueadura sem a permissão do marido é apenas um passo em benefício das mulheres.
'Porta de entrada'
Lílian Leandro, diretora-executiva do Instituto Planejamento Familiar, afirmou que a dificuldade de acesso à laqueadura causa um impacto profundo na vida das mulheres mais pobres.
"Isso é uma porta de entrada para diversos outros problemas, como aumento da pobreza, criminalidade e violência doméstica. Gravidez na adolescência, por exemplo, faz garotas deixarem a escola. Essa evasão faz com que a gente tenha um grau de escolaridade menor e mais gastos públicos. Nós temos um custo anual de R$ 4,1 bilhões por conta da gravidez não planejada, de acordo com estudo publicado na National Library of Medicine, nos Estados Unidos."
Para Lílian, a possível sanção do presidente traz avanços, mas ainda não resolve o problema do planejamento familiar no Brasil.
"Precisamos de informações sistematizadas e de agilidade nesses processos. Recebemos muitos relatos de dificuldade de agendamento e até na realização do procedimento. O que tem que prevalecer é a vontade e o direito de escolha que definirão o futuro da mulher. Quando e quantos filhos ela quer ter", argumentou Lílian.
Mudanças no corpo e problemas de saúde
Além dos problemas financeiros e de planejamento familiar, Monica conta que as gestações também causaram diversos problemas de saúde.
"O corpo sente as mudanças. Com elas, surgem os problemas de saúde. Depois do meu quarto filho, o médico disse que eu morreria se passasse por mais um parto. Isso também me trouxe consequências emocionais. Precisei ter jogo de cintura para cuidar de casa, filhos, marido e igreja. Você fica sempre por último porque a prioridade são eles", disse a dona de casa.
Ela disse que, depois de tantas gestações, sentiu o corpo "desmontar".
"Os órgãos não aguentam. Dói tudo. É uma pessoa crescendo dentro de você, então isso mexe com tudo, fora e dentro", conta ela.
Monica disse ter passado a "viver", depois de ter completado 40 anos, quando a maior parte dos filhos chegou à idade adulta. Ela conta que se casou com 18 anos, quando estava grávida do primeiro filho. Seis anos depois, ela já tinha quatro. Mas, na época, o casal nem cogitava fazer uma laqueadura.
"Quando a gente casou, não podíamos fazer uma operação ou usar outro método de evitar filhos. Conforme fomos nos envolvendo na nossa igreja, a Assembleia de Deus, essas regras entraram na cabeça do meu marido e na minha. Só depois do sexto filho, a gente caiu na real. Mas aí já era tarde", disse.
A dona de casa disse que essa doutrina de proibir contraceptivos definitivos foi derrubada, e que hoje é seguida apenas por poucas pessoas que frequentam a mesma igreja que ela.
"Mas ainda tem pessoas com isso na cabeça. Pensam que a mulher foi feita para ter filhos e encher a casa. Muitos evangélicos ainda têm essa mentalidade."
A especialista em planejamento familiar Lílian Leandro explica que, atualmente, para conseguir fazer laqueadura depois de um parto de risco, a mulher precisa de um laudo assinado por dois médicos para validar que ela pode morrer, caso tenha mais um filho.
"Eles vão colocando obstáculos e muitas vezes a mulher desiste. Muitas não têm dinheiro para condução ou com quem deixar o filho. Quando aprovam, ainda pedem 30 dias de prazo para realizar o procedimento. A intenção é que a paciente tenha mais tempo para refletir, por se tratar de um procedimento irreversível. Falam isso para uma pessoa com mais de 25 anos e pelo menos 2 filhos", afirmou Lílian.
Ela vê esse processo como uma falta de respeito à decisão da mulher, principalmente as mais pobres.
"A gente não vê casos assim nas classes A e B. As dificuldades que as mulheres menos favorecidas têm de acesso à Lei de Planejamento Familiar é muito grande. As mulheres que têm condições vão para o hospital e fazem o parto, pelo plano de saúde ou rede particular, e já fazem a laqueadura junto com a cesária quando a indicação clínica da mãe evolui para isso", afirmou.
Já as mães mais pobres, explica ela, precisam voltar para a fila do SUS após o parto para fazer um novo procedimento. Lílian conta que, muitas vezes, elas já estão grávidas novamente quando a laqueadura é finalmente agendada.
'Não me arrependo'
Ao comentar o passado e refletir se tomaria outras decisões caso tivesse a mentalidade que possui hoje, Monica disse que gostaria de ter apenas dois filhos.
"Eu não teria tantos filhos. Os mais velhos passaram aperto mesmo. Como temos essa lei, ou ele (marido) assinaria para permitir a laqueadura ou casaria com outra pessoa. Isso acontece por culpa dos maridos e da sociedade. Vivemos em um mundo machista no qual a mulher tem que parir e estar sempre disponível", afirmou.
A dona de casa faz questão de deixar clara a felicidade de ter cada um de seus filhos.
"Eu não me arrependo de ter os meus filhos. Eles são tudo o que eu tenho. A maternidade é o momento mais especial de uma mulher. É quando uma pessoa sai de dentro de você, cria asas e voa. Mas isso me fez parar de estudar e nessa parte me arrependo. Meus filhos foram um impedimento na minha vida. Com as condições que a gente tinha, precisei parar de trabalhar para cuidar deles e deixar meu marido trabalhar para tentar sustentá-los", afirmou.
Ela conta que não quer que as três filhas passem pela mesma situação e diz que as orienta com frequência. A mais velha teve o primeiro filho com 21 anos, em 2021. A mãe aconselha para que ela tenha, no máximo, mais um.
"Não quero me meter na vida delas, mas elas precisam ser independentes. Ser diferente de mim. Quero que elas estudem, trabalhem e tenham profissão", afirmou.
A deputada autora do projeto, Carmen Zanotto (Cidadania-SC), disse em entrevista à BBC News Brasil que acredita na sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela apresentou o projeto em 2014.
A deputada afirmou que, após a aprovação, os maiores desafios serão fazer com que a população tenha conhecimento de seus direitos e os reivindiquem nos serviços de saúde - e que o governo os cumpra.
"O SUS tem capacidade para atender a todos esses casos. Só será necessário priorizar os mais urgentes. As pessoas precisam conhecer e cobrar os seus direitos."
Carmen afirma que esse projeto é um grande avanço para a vida dessas mulheres. "Quantas 'Monicas' como a que você entrevistou nós temos? São mulheres que gostariam de ter direito de escolha e tomada de decisão. Isso não é controle de natalidade. É dar o mesmo direito a todos".
*A BBC News Brasil optou por ocultar o identidade da entrevistada