Mortalidade infantil entre Yanomamis se compara às maiores taxas do mundo na África Subsaariana

Dados compilados pelo Ministério Público Federal em Roraima mostram cenário de desassistência em comunidade indígena na Amazônia

30 jan 2023 - 16h52

A emergência sanitária entre os Yanomamis revela algumas das piores realidades de uma tragédia humanitária. Dados compilados pelo Ministério Público Federal (MPF) em Roraima apontam que a taxa de mortalidade infantil da etnia chega a ser seis vez maior do que o do Brasil e é comparável ao índice de países da África Subsaariana - que reúnem os piores números do ranking da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Desde sexta-feira, dia 20, o governo federal declarou emergência em saúde pública no território indígena Yanomami, na Amazônia, após identificar alta de casos de malária, desnutrição infantil e problemas de abastecimento. O processo está ligado ao aumento desenfreado do garimpo ilegal na região e à falta de assistência. As imagens de indígenas magros e abatidos, entre eles várias crianças, chamaram a atenção nas redes sociais e na comunidade internacional.

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Segundo a liderança Yanomami Dário Kopenawa, filho do xamã e intelectual Davi Kopenawa, o cenário é de desolação na maior reserva indígena do Brasil. “Somos abandonados. Já alertamos há muitos anos sobre essa crise humanitária e de saúde”, afirmou ao Estadão. Segundo ele, é visível o recente aumento nas mortes infantis por desnutrição e malária, além da falta de remédios.

Investigação foi aberta por determinação do Ministério da Justiça
Investigação foi aberta por determinação do Ministério da Justiça
Foto: Urihi Associação Yanomami

Dados reunidos pelo MPF de Roraima corroboram o que ele diz. Em 2019, quando a taxa de mortalidade infantil brasileira era de 13,3 óbitos por mil crianças nascidas vivas, no território Yanomami esse índice era de 88,04. O Amapá, que ocupava a pior posição, registrou naquele ano 22,9 mortes por mil entre os Estados. Já Roraima, onde fica a maior parte das terras indígenas da etnia, 18,8.

No ano seguinte, a taxa chegou a 112,38 mortes por mil crianças Yanomamis nascidas vivas. A comparação entre um território e uma nação reflete, evidentemente, apenas parte da realidade do país onde o território está inserido, mas é como um retrato daquela região, diz o médico e pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz Paulo Cesar Basta. “Cem óbitos no total do País vão representar pouco. Há que se considerar a realidade local, as características históricas e culturais, mas a taxa permite comparar a realidade de regiões igualmente ruins”, afirma o pesquisador, que há 25 anos trabalha com as populações Yanomamis.

Os dados da Terra Indígena Yanomami são maiores, por exemplo, do que o de países como Chade (110,53), Sudão do Sul (98,69) e República Centro-Africana (103,05). Fica atrás apenas da Nigéria (113,82), Somália (114,89) e Níger (116,32), as maiores taxas registradas em todo o mundo em 2020.

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Incompletos, os dados de 2021 não permitem aferir a situação completa. Nos três primeiros meses do ano, no entanto, foram 20 óbitos para 150 nascimentos, uma taxa de 133,33, de acordo com informações do MPF-RR.

A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre os dados de anos anteriores de mortalidade infantil entre os Yanomamis, mas até a publicação desta reportagem não obteve respostas. No entanto, informações obtidas pelo MPF junto à Secretaria de Saúde Indígena do ministério apontam que esse índice, após atingir seu ponto mais alto em 2011 (135,6 mortes por mil nascidos vivos) caiu para seu menor valor em 2015 (60,8). Desde então, não parou de subir, mas apenas em 2020 voltou a passar da marca dos cem óbitos por mil nascidos vivos.

“Em 2021, recomendamos a profunda reestruturação da assistência à saúde indígena ao Ministério da Saúde”, diz o procurador Alisson Marugal. “Era o maior índice de mortalidade infantil do Brasil e do mundo. Os casos de malária entre os Yanomamis eram também metade de todos os casos do País.”

Faltam dados compilados ainda mais recentes, mas entre os procuradores federais em Roraima, os 12 meses de 2022 ganharam o apelido de ‘Ano do Caos’. Segundo Marugal, o MPF cobrou e deu prazo para que o ministério recuperasse a assistência aos Yanomamis - até a alimentação nos postos de saúde havia sido cortadas- mas nada melhorou. “Em 2022 houve a total paralisação das atividades de combate ao garimpo e novas invasões. O resultado foi uma rápida aceleração da tragédia”, afirma.

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Problema histórico

Segundo o pesquisador da Fiocruz, historicamente o território Yanomami enfrenta problemas e as taxas de mortalidade sempre foram elevadas, mas com a explosão do garimpo, o problema tem sido impulsionado. A fragilização dos órgãos de apoio indígena e a escalada da invasão pelos mineradores irregulares na gestão Jair Bolsonaro (PL) agravaram o quadro.

Segundo ele, há que se considerar a dívida histórica do Estado brasileiro com os povos originários, com as matanças, expropriação de território e aniquilação da cultura formam o pano de fundo dos povos indígenas do Brasil. No caso dos Yanomamis, ainda mais, por estarem em uma área de difícil acesso, onde a chegada dos serviços públicos é extremamente precário.

“Nesse cenário quando vem o garimpo, levando uma parafernália de crime organizado, ele entra devastando tudo: a floresta, as caças dos índios que acabam fugindo, e isso dificulta o acesso ao alimento”, diz .”A derrubada de cobertura vegetal e as cavas que são deixadas modificam o ecossistema e aumentam a população de mosquitos, o da malária notadamente, e a leishmaniose. Por isso costumamos dizer que no rastro do garimpo vem a malária.”

Nesse processo, com a derrubada da floresta, diminui a possibilidade de os indígenas fazerem suas roças e a segurança nutricional é mais uma vez afetada. Mas o problema não para por aí. “O garimpo promove também a desorganização social porque coopta, principalmente, os jovens com promessas de enriquecimento fácil, tira o homem do convívio com a comunidade. Pais deixam os filhos e as esposas para trabalhar no garimpo”, afirma.

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Crianças Yanomami resgatadas no domingo, 22
Foto: Weibe Tapeba/Sesai

Ao mesmo tempo em que devasta a floresta, causa insegurança alimentar e desestrutura a organização social das aldeias, o garimpo traz também o crime. “Junto com o garimpo vêm o álcool, as drogas, a prostituição, o abuso sexual de mulheres”, afirma Basta.

Isso sem falar na ponta do iceberg de problemas, explica o pesquisador, que é a contaminação por mercúrio. “Quando cai na água o mercúrio vai contaminar tudo, de algas e crustáceos aos peixes. Quando o homem come esse peixe vai se contaminar também. Uma grávida que consuma esse alimenta vai, por exemplo, passar o mercúrio para a criança, que já no período pré-natal fica exposta aos efeitos graves dessa substância’, afirma.

Polícia Federal abre investigação

Na terça-feira, 24, o advogado indígena Ricardo Weibe Tapeba, que assumiu neste mês a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, disse que mais de mil Yanomami estão precisando de atendimento emergencial nas aldeias. Um hospital de campanha foi instalado na comunidade Surucucu para intensificar o atendimento emergencial. Mas, segundo ele, essas primeiras ações são apenas para “enxugar gelo” e é preciso um reforço maior na ação emergencial.

Segundo juristas ouvidos pelo Estadão, a crise Yanomami pode ser enquadrada como genocídio. A Polícia Federal abriu investigação sobre o caso. Os juristas defendem que a investigação apure se houve ação direta ou omissão dos agentes públicos para privar os indígenas de assistência e atendimento ao ponto de levá-los à morte. Os potenciais responsáveis – pessoas físicas que podem ser garimpeiros, ex-ministros e até o ex-presidente da República – poderiam ser processados pela Justiça ou por um tribunal penal internacional.

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Em mensagem na rede Telegram, Bolsonaro chamou a crise na saúde Yanomami de “farsa da esquerda” e disse que a saúde indígena foi uma das prioridades do seu governo, destacando a atuação na pandemia. Nos últimos quatro anos, o ex-presidente defendeu a flexibilização do garimpo em áreas indígenas.

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