"Muito do que foi feito, foi sucateado", diz ex-ministra Matilde Ribeiro

Em conversa com a Alma Preta Jornalismo, a primeira ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial faz um balanço sobre o desmonte do órgão; dados revelam falta de priorização orçamentária para a pasta na gestão Bolsonaro

11 jul 2022 - 16h51
Matilde Ribeiro, ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
Matilde Ribeiro, ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)
Foto: Imagem: Pedro Borges / Alma Preta Jornalismo / Alma Preta

Nos últimos anos, a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial sofreu cortes orçamentários, uma redução significativa desde 2019. De acordo com Matilde Ribeiro, ex-ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), a gestão Bolsonaro não prioriza problemáticas raciais e acaba por enfraquecer aparelhos importantes para o avanço nas conquistas do Movimento Negro.

"No ponto de vista da institucionalização da política racial, neste momento, muito do que foi feito, foi sucateado e colocado abaixo. Inclusive, a própria estrutura da secretaria foi perdendo fortalecimento institucional, considerando que começou como uma secretaria com status de ministério, depois se tornou ministério, mas decaiu. Antes mesmo de Bolsonaro, no governo Temer, foi rebaixada para secretaria nacional, como segue até hoje", aponta a ex-ministra, em conversa com a Alma Preta Jornalismo

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Com o propósito de enfrentar as desigualdades étnico-raciais no país, a SEPPIR foi instituída em 2003 pela Lei de Nº 10.678, conquista do movimento negro que possibilitou criação de decretos que também deram origem ao Conselho Nacional de Promoção da Igualde Racial (CNPIR), a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PNPIR) e o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial (PLANAPIR).

No mesmo ano, Matilde Ribeiro foi nomeada ministra-chefe, cargo que permaneceu por mais tempo em relação aos demais quatro ministros que também estiveram à frente da pasta. No comando da secretaria, defendeu cotas raciais como forma de democratizar acesso ao ensino superior, considerando a criação de vagas para negros e índios como forma de ampliar as oportunidades para pessoas em situação de vulnerabilidade.

"A secretaria veio fruto da luta do Movimento Negro em reparar uma falta que já é histórica, sobretudo das mulheres negras. Nós vimos como uma conquista e uma oportunidade de institucionalizar as nossas questões, propor resoluções e avançar na questão da igualdade racial. Além dos desdobramentos da SEPPIR após os decretos que viabilizaram o conselho nacional e o plano nacional e a instituição do Estatuto da Igualdade Racial, que dá as diretrizes ao Estado, tivemos diversas outras contribuições importantes, como priorização das pautas quilombolas quando estive ministra, por exemplo", explica. 

Contribuições da SEPPIR

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Nos seus primeiros anos com Ribeiro no posto, a secretaria conseguiu mapear, junto aos movimentos e articulações sociais, cerca de 6 mil quilombos através do programa 'Brasil Quilombola'. Além de estruturar internamente o projeto - responsável por monitorar políticas públicas destinadas aos povos quilombolas -, a secretaria foi responsável por criar elos com o Ministério de Desenvolvimento Agrário e a Fundação Palmares. Segundo a ex-ministra, um 'triângulo' possibilitou uma maior coordenação de políticas quilombolas.

Na saúde, Matilde destaca o trabalho contínuo da secretaria para instituir políticas de saúde destinadas especialmente à população negra, sobretudo às mulheres negras, agentes da luta desde antes mesmo da fundação da secretaria. 

Já na educação, a ex-ministra destaca a efetivação da Lei nº 10.639/03, medida que passou a obrigar o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira. Matilde Ribeiro também menciona a importância do órgão na articulação interna, coordenada pelo Ministério da Educação (MEC), mas com suporte da SEPPIR, na implementação da Lei de Cotas, que completa dez anos neste ano. 

"As contribuições foram diversas, nos dando até uma perspectiva de construção direta com África, sobretudo países que falavam a língua portuguesa. Desde o início da minha gestão, há mais de 20 anos, nós tentamos ratificar um novo instrumento de proposição para políticas de igualdade racial. Junto à Organização dos Estados Americanos (OEA), nós conseguimos firmar um compromisso, só neste ano, com a convenção nacional que propõe que os países, através de suas ferramentas públicas, sejam contra todas as formas de discriminação racial", aponta.

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"Acredito que seja o maior avanço em anos, mas que não foi concebido na gestão atual, apenas ratificado. Mesmo com a secretaria, conquistamos a passos lentos isso. Agora, sem força institucional e baixa orçamentária, avalie o que vem de retrocesso a ser resolvido nos anos subsequentes. Ao meu ver, a lógica de institucionalização de política racial no governo Lula e Dilma se perdeu com Temer e seguiu com Bolsonaro", complementa a ex-ministra Matilde Ribeiro.

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Baixo orçamento e 'sucateamento' 

Dados comprovam o que é defendido pela ex-ministra da SEPPIR sobre a atuação do governo atual com a agenda racial nos últimos anos, que manifesta a sua falta de priorização através de baixos investimentos. É o que aponta o dossiê realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), 'A Conta do Desmonte'. 

Só em 2021, de acordo com o levantamento, o recurso autorizado para a pasta racial, no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), foi de apenas R$ 3 milhões. O valor foi destinado ao funcionamento do Conselho Nacional de Promoção da igualdade Racial e do Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), além de ser usado para ações de fortalecimento institucional dos órgãos estaduais e municipais de enfrentamento ao racismo e promoção da igualdade racial. 

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Apesar do valor baixo, o governo não foi capaz de utilizá-lo: foram gastos apenas R$ 2 milhões, 66% do total disponível, sendo metade utilizada para o pagamento de despesas de anos anteriores. 

No entanto, o estudo ainda aponta que, enquanto o governo não financia a política de igualdade racial, o Brasil segue com os piores indicadores para a população negra: mata-se em nome do combate ao tráfico de drogas mais de 20 mil jovens negros ao ano. Em relação ao feminicídio de mulheres negras, registrou-se aumento de 54%, enquanto a taxa de mulheres brancas caiu 9,8%. A população negra ganha pouco mais da metade (57,4%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca (IBGE, 2014) e os territórios quilombolas registram taxa de 47,8% de insegurança alimentar grave (Consea, 2012).

De acordo com dados do Portal da Transparência e analisados pela mídia nacional 'Gênero e Número', os convênios e acordos do MMFDH totalizaram pouco mais de meio bilhão de reais, mas apenas 1,3% deste valor (R$ 6,5 milhões) foi destinado às políticas de promoção de igualdade racial.

"Frente aos dados, é possível afirmar que houve um sucateamento e congelamento de políticas de promoção de igualdade racial. Citando como exemplo a área que acompanhei mais de perto, é possível identificar inúmeras denúncias da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos que a construção anterior, com ações voltadas às comunidades quilombolas mapeadas, está super enfraquecida e isso é sintomático sobre o atual governo", analisa Matilde Ribeiro.

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Projeção para o próximo mandato

Sobre a hipótese de que o ex-presidente Lula vença a próxima corrida eleitoral, a ex-ministra define o próximo mandato com um "começar de novo tensionador". Ela destaca que, para os aparelhos que dialogam com a promoção da igualdade racial, uma realidade será o baixo orçamento para implementação das ações e manutenção do que já foi conquistado nos últimos anos. 

Matilde defende que, para qualquer área de política pública, é fundamental ter orçamento próprio e isso foi descaracterizado junto à SEPPIR e aos conselhos de diretrizes raciais, o que será sinônimo de nova luta para conquistar espaço nos planejamentos anuais. 

Frente à necessidade histórica de priorização das questões raciais e do retrocesso com os congelamentos, a ex-ministra ainda defende que, para os próximos anos, deve ser considerada a lógica que a política racial tem que ser transversal e presente entre de todos os ministérios.

"E isso vai ser cobrado pelas articulações sociais. Hoje em dia, diferente de 2003, é possível tecer mais detalhes da construção de políticas públicas voltadas à igualdade racial e suas interseccionalidades. Deveremos cobrar, mas entendermos também que o recuo de formação de políticas inclusivas está grande e as questões de vulnerabilidade tomaram corpo. Para os próximos, a retomada vai ser difícil", finaliza.

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