Mulher da Casa Abandonada: por que é tão difícil investigar a escravidão doméstica?

O ambiente doméstico, cenário onde o crime é praticado, cria obstáculos para a comprovação; vítima nem sempre reconhece a exploração

27 jul 2022 - 15h11
(atualizado às 18h25)

O trabalho escravo doméstico, crime que voltou a chamar a atenção após o caso da "mulher da casa abandonada", em São Paulo, é uma prática difícil de ser combatida. Ela ocorre dentro de casa, o que cria obstáculos para o flagrante. Uma vez feita a denúncia, o poder público precisa de ordem judicial para investigá-la e tentar comprová-la, de acordo com a Constituição brasileira. E muitas vezes, a vítima está sozinha e não reconhece a própria exploração a que é submetida.

Esses são alguns obstáculos que os procuradores do Ministério Público do Trabalho relatam diante desse tipo de crime que voltou a chamar a atenção com o podcast "A mulher da casa abandonada", do jornal Folha de S. Paulo.

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Segundo podcast, Margarida Bonetti foi acusada de manter uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão
Segundo podcast, Margarida Bonetti foi acusada de manter uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão
Foto: Estadão

De acordo com a publicação, Margarida Bonetti, herdeira de uma família rica e tradicional de São Paulo, foi acusada de manter uma empregada doméstica em trabalho análogo à escravidão por 20 anos, quando morava nos Estados Unidos. Margarida não chegou a ser presa e voltou ao Brasil à época do julgamento, por volta dos anos 2000, também conforme a apuração da Folha. A curiosidade sobre o caso fez com que o casarão onde mora, em Higienópolis, região central da cidade, virasse ponto de visitação nas últimas semanas.

Embora Margarida não deva responder ao suposto crime no País, o episódio joga luz sobre a nossa realidade. O trabalho doméstico, assim como as formas de exploração do trabalho da mulher, permanece invisibilizado. Essa é a opinião da procuradora Lys Sobral Cardoso, coordenadora nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (Conaete) do Ministério Público do Trabalho.

"O trabalho doméstico é uma forma de exploração que atinge mais as mulheres e que é invisibilizada. A gente tem pistas disso. Isso acontece por vários fatores, entre eles, a maior tolerância a esse tipo de violência e exploração e também pelo fato de acontecer no âmbito das residências, onde é mais difícil vê-la e denunciá-la", avalia a especialista.

Yolanda Ferreira foi resgatada em 2020, graças à denúncia de uma nova vizinha, que não entendia por que a empregada do apartamento ao lado mal aparecia no corredor
Foto: Estadão

Especialistas também apontam que o trabalho doméstico é uma atividade reconhecida na sociedade, mas sua superexploração acaba sendo normalizada. Com isso, os dados subnotificados e não contabilizados inviabilizam o planejamento de políticas públicas efetivas. Também existem dificuldades relacionadas à própria natureza da condição. "A pessoa já passou por vários tipos de violência. Com isso, os cuidados têm de ser redobrados na forma de abordar e entender o que a pessoa vivenciou e respeitar também que ela se manifeste", diz a procuradora.

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A investigação é delicada e pode levar mais tempo que os outros crimes. O fluxo de trabalho demanda que se peça uma autorização judicial prévia para ingresso das equipes na residência que é alvo da denúncia por causa do regra constitucional da inviolabilidade do domicílio.

O trabalho doméstico, aquele prestado para uma pessoa ou família, se torna análogo ao escravo quando a trabalhadora deixa de receber direitos, tais como carteira assinada, salário, férias e descanso semanal. Diante dessas particularidades, o MPT está criando um grupo de estudos exclusivo para o trabalho escravo doméstico no contexto da escravidão contemporânea.

Desde 1995, o grupo especial móvel de fiscalização, que envolve a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho da pasta do Trabalho, MPT, Polícia Federal, Ministério Público Federal e Defensoria Pública da União, resgatou 58 mil trabalhadores em fazendas. Mais de 90% das pessoas resgatadas no Brasil desde 2013 eram homens. As atividades envolviam a derrubada de mata nativa, produção de carvão para siderurgia, extração de minérios, construção civil e até em fábricas no meio urbano.

Yolanda Ferreira, de 89 anos, moradora de Peruíbe, trabalhou por mais de 50 anos para a mesma famíla em situação análoga à escravidão, em Santos (SP)
Foto: Estadão

A partir de 2003, quando o Governo Federal passou a pagar seguro-desemprego para as pessoas resgatadas, os dados passaram a se tornar mais visíveis. De lá para cá, 2.330 mulheres foram encontradas trabalhando em condições análogas à escravidão. Destas, 61% declararam ser negras e 36% nasceram no Nordeste.

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Denúncias aumentam após veiculação do podcast

A palavra "escravocrata" foi pichada no muro da casa Margarida Bonetti, o que indica quea curiosidade em torno da "mulher da casa abandonada" tem traços de indignação com o crime que a moradora teria cometido nos Estados Unidos. Vizinhos da rua Piauí relatam ter ouvido gritos como "acabou a escravidão" ou "você não tem escravo aqui" diante do portão da casa. O sentimento era o mesmo nas redes sociais, com a alegação de que o foco deixou de ser o crime que teria sido cometido e passou a ser o mistério da casa abandonada.

Esse sentimento está diretamente ligado ao aumento do número de denúncias de trabalho escravo doméstico recebidas pelo Ministério Público do Trabalho. O órgão recebeu 36 de denúncias entre 1 de janeiro e 7 de junho. Entre 8 de junho a 25 de julho, período de divulgação do podcast, foram 24 denúncias. Isso significa que praticamente a metade das denúncias do ano foram feitas após a divulgação. Esses números recentes, além de experiências anteriores, mostram que as denúncias contribuem com o combate ao trabalho escravo doméstico.

"Houve um aumento considerável (das denúncias). Não dá para dizer que foi só pelo podcast, mas a relevância que o tema ganhou nas redes sociais e no debate público influenciou com certeza", avalia Lys Sobral Cardoso,

Paralelamente ao efeito recente do podcast, o Ministério do Trabalho e Previdência registra aumento dos resgates de trabalhadores domésticos em condições análogas à escravidão no País nos últimos anos. Em 2021, a pasta registrou 31 casos, maior número desde 2017, início da série histórica.

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Os pesquisadores afirmam que as elevações das denúncias têm, em geral, relação com a repercussão de determinados casos. Um dos mais importantes aconteceu no fim de 2020. Madalena Giordano, mulher negra de 46 anos, foi resgatada em Patos de Minas (MG) depois de viver desde os 8 anos em condições análogas à escravidão.

Segundo o MPT, Madalena passou a ser empregada da família, sem direito a salário, descanso semanal ou qualquer outro benefício e em regime de total exclusão social. Em maio, o Ministério Público Federal denunciou quatro membros da família. A apuração na esfera criminal ainda tramita. A defesa nega que a família tenha praticado qualquer conduta que se assemelhe a essas práticas. Os termos trabalhistas tinham sido resolvidos anteriormente por meio de acordo.

Prisão pode ser de dois a oito anos, diz Código Penal

Desde os anos 1940, o Código Penal prevê prisão de 2 a 8 anos para o crime. Quatro elementos podem definir a escravidão contemporânea: trabalho forçado (com cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (cativeiro atrelado a débitos, muitas vezes fraudulentos), condições degradantes (trabalho indigno, que põe em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (que leva ao completo esgotamento).

Como parte de acordo feito na Justiça, Madalena recebeu o apartamento e um carro da família para a qual trabalhava
Foto: Tais Teófilo

São muitos os episódios recentes no Brasil. No Rio, uma mulher de 86 anos foi resgatada de condições análogas às de escravo após 72 anos trabalhando como empregada doméstica para três gerações de uma família. Conforme o Ministério do Trabalho, é a mais longa duração de exploração de uma pessoa em escravidão contemporânea desde que o Brasil criou o sistema de fiscalização, em maio de 1995. A vítima está em abrigo público.

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No final do mês passado, o Estadão contou a história de Yolanda Ferreira, de 89 anos, moradora de Peruíbe, litoral de São Paulo. Por cerca de 50 anos, ela trabalhou para uma família em situação análoga à escravidão, em um prédio de alto padrão no bairro Gonzaga, em Santos. Ficou sem receber salários, era impedida de sair sozinha e foi vítima de abusos físicos e verbais por parte da patroa e de uma das filhas, segundo ação do MPT na Justiça.

Yolanda foi resgatada em setembro de 2020, graças à denúncia de uma nova vizinha, que não entendia por que a empregada do apartamento ao lado, uma idosa negra, mal aparecia no corredor. E, quando saía, era sempre de cabeça baixa, sem responder a seus cumprimentos. Após o resgate, uma das primeiras vontades da família foi levar Yolanda para conhecer Santos, que ela via só da janela do apartamento.

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