Mulheres negras e os mecanismos de fazer morrer em vida

Março é momento em que questionamos nosso encaixe na categoria mulher que, numa lente tão ampla, tende a excluir muitas vozes

31 mar 2023 - 13h08
Imagem mostra mulher negra em reunião da Marcha de Mulheres Negras, no 8º Festival Latinidades.
Imagem mostra mulher negra em reunião da Marcha de Mulheres Negras, no 8º Festival Latinidades.
Foto: Imagem: Marcello Casal jr/Agência Brasil / Alma Preta

Quando pensamos no feminicídio negro no Brasil, é quase instantâneo que pensemos na morte biológica de mulheres negras. Principalmente depois de 2015, ano em que foi assinada a lei 13.104, que define o feminicídio como a morte da mulher pelo fato de ser mulher. Com isso, passamos a ter uma visão balizada pela lente jurídica, o que, apesar de legítimo, é apenas uma perspectiva possível sobre o assunto.

A reflexão que propomos e que vamos desdobrar nas próximas linhas  é a de que o feminicídio - especialmente quando ocorre sobre copos negros - não se manifesta unicamente pela morte biológica. Entendemos o feminicídio negro como um processo gradual, que se dá a partir das múltiplas violências presentes no racismo estrutural. Diante dessa perspectiva, é indispensável compreender como os corpos de mulheres negras - sejam elas cis ou trans - foram e são marginalizados e criminalizados ao longo da história,  e transformados em corpos matáveis, a quem é negada a humanidade e, assim, legitimando tais mortes como biológicas e sociais.

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Março tende a ser um momento em que diferentes grupos de mulheres negras questionam se são ou não contempladas pela memória que a data remete. Questionamos nosso encaixe na categoria mulher, que numa lente tão ampla, tende a excluir muitas vozes.  A discussão que fazemos aqui dialoga com esta inquietação, na medida em que levantamos um questionamento sobre o termo "feminicídio" e que significados ele carrega quando acompanhado de um um olhar racializado. Para isso,  propomos um olhar para o fenômeno do feminicídio de  mulheres negras não só no âmbito biológico, ou seja, de perder a vida pela vida, mas também considerar essas mortes, como diria Achille Mbembe, em seu livro Necropolítica, como "matanças invisíveis" que denotam as formas de  "morte-em-vida". 

Nesse sentido, ao olharmos para o contextobrasileiro, podemos perceber que a necropolítica, isto é, essa política de produção de morte direcionada aos corpos negros, é sistemática, propositiva e estratégica. Ao refletir sobre tal fato, podemos compreender que as mulheres negras, estando na base da pirâmide social , carregam noções necropolíticas em seus corpos. Mulheres negras sofrem tantas violências ao longo de suas trajetórias e narrativas, que o conceito de morte, nesse caso, não se restringe à morte biológica. 

Para que você, que nos lê, acompanhe o raciocínio que nos trouxe até essa conclusão, trazemos alguns parâmetros de como isso se dá na prática, ou seja, como mulheres negras experimentam a morte-em-vida: tendo seus filhos assassinados em operações policiais, não tendo acesso igualitário no mercado de trabalho, sendo submetidas a condições de trabalho precarizadas, sendo inviabilizada suas formas de usufruir das políticas públicas, tendo tratamento desigual no puerpério, não sendo vistas como produtoras de conhecimento válido - na academia e fora dela, tendo seus corpos violentados sexualmente, tendo seus cabelos, traços e corpos hipersexualizados e marginalizados, entre inúmeros de outros exemplos. Essa diversidade de violências que se sobrepõem e se manifestam em diferentes etapas da vida, faz com que sejam construídas propositalmente a partir das matanças invisíveis e das formas de morte em vida. 

Todas essas expressões do feminicídio negro tratadas como formas de morte-em-vida e matanças invisíveis são parte de um poder soberano que é expresso pelo Estado, na intensificação da descartabilidade dos corpos negros. A perpetuação da lógica colonial permite que nossos corpos sejam alvos dessa política de produção de morte que mata e tira nossa humanidade, sem espanto, e muitas vezes, gerando alívio àquele que coloca e mantém o corpo negro como corpo inimigo. Ou seja, a morte do outro, esse outro negro, gera alívio. Como afirma Mbembe (2018), considerar o corpo negro como um corpo descartável se torna um elemento estruturante do pensamento necropolítico.

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Reforçando a noção de privilégio, podemos compreender como é construída também a noção de medo, sobretudo, do corpo negro. A materialização da relação do "Outro" com o "eu" se faz a partir de uma das dimensões também do colonialismo. Por isso, é importante que vejamos sobretudo como a mulher negra é inserida coercitivamente nesse lugar do Outro e, como estar nesse lugar, corrobora para a construção ideológica do medo. Para entender melhor acerca disso, observemos quando Cida Bento (2002) afirma que a lógica do medo direcionada ao corpo negro é um medo biológico, pois o corpo negro é limitado ao âmbito biológico.

A realidade patológica da segurança pública dentro das favelas, traz à tona a presença coercitiva das operações policiais e sua manifestação enquanto instrumento de matanças visíveis e invisíveis. Movimento de mães como "mães de Acari", "mães de Manguinhos", entre outros, são uma das maiores materializações da discussão que levantamos. O fio aqui tecido é compreender que mães que perdem seus filhos em operações policiais, morrem também em seu sentido simbólico. Ou seja, perder seus filhos é uma forma de morrer em vida. O "outro", nesses casos, se estende para além do indivíduo. Nós, pessoas negras, incontáveis vezes morremos individual e coletivamente, de forma física e imaterial, direta ou indiretamente. Qual o sentimento que te invade cada vez que ouve um caso de violência sobre um corpo negro?

Leia mais: Coalizão Negra cobra que STF reconheça genocídio negro na véspera do 13 de maio

As mortes direcionadas e selecionadas aos corpos negros são mortes que consideram esses corpos descartáveis, elimináveis, permissíveis de serem mortos, encarcerados, abusados. É sob o égide da lógica necropolítica do Estado se portar, que opera o genocídio da juventude negra brasileira, que conta não ''apenas'' com a morte de jovens meninos negros, mas seleciona também a morte simbólica de suas mães. 

Ou seja, quando refletimos sobre o medo que é construído e alimentado no imaginário de uma sociedade que é estruturalmente racista, podemos perceber que ele é intencional e faz parte de uma estratégia perversa e orgânica. Ninguém precisa dizer, explicitamente, a quem ocupa os espaços de decisão e quem operacionaliza isso no dia a dia sabe quem são seus alvos e como agir. O silêncio e a manutenção dessa lógica mortífera também fazem parte desse leque de expressões das nossas mortes-em-vida. Quando olhamos sob a ótica da branquitude, o medo do negro se relaciona com o conceito de humanidade e da sombra, pois seria o medo daqueles que não são humanos, como diz Frantz Fanon (2008). Entretanto, quando nos direcionamos para o medo sentido pelas pessoas negras, diante de todo o contexto exposto, é perceptível que vivemos com medo. Através dessa lógica, indagamos: viver com medo é estar vivo? Nós sabemos e sentimos todas essas violências, mesmo antes de tocarem nossa carne ou espírito. Vivemos face à morte, constantemente. Calculando formas de escapar de mais uma emboscada de matança invisível.

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Observando sob a lógica das mulheres negras, a economia do medo opera como um mecanismo de reprodução da "morte-em-vida". O medo seria, nesse sentido, a mais adequada palavra para materializar o feminicídio negro, pois é a partir dele que as manifestações da violência do racismo se afirmam na lógica necropolítica de conceder vida e morte.

Frente a tudo isso, finalizamos: É preciso morrer biologicamente para ser considerado morte?

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