O Brasil, assim como diversos países da região do sul global, foi marcado por violências históricas, estruturais e coloniais que agravam as desigualdades sociais, econômicas, de gênero e também climáticas. A chegada de grandes empreendimentos desenvolvimentistas mostra que esses processos continuam acontecendo, por exemplo, ao expulsar populações indígenas de seus territórios, destruindo culturas e degradando o meio ambiente.
As inundações no Acre no início de 2023 e os efeitos da mineração mais recente em Maceió exemplificam essa disparidade, onde os impactos negativos se acentuam sobre grupos vulneráveis, especialmente no norte e nordeste do país.
A Rede Vozes Negras pelo Clima, criada pela Anistia Internacional Brasil, marcou presença na Conferência das Partes (COP28), em Dubai, nos últimos dias, para abordar justamente essas desigualdades. O grupo reúne 11 mulheres ambientalistas negras e diversas de 8 estados brasileiros, que refletiram sobre a crise climática, mostrando que o problema não é só de quem tem privilégio. "Deveríamos estar em pânico, preocupação é pouco. Qualquer situação que venha ameaçar ou atingir a vida das pessoas, de espécies, ambientes, exige atenção", apela a educadora Camila Aragão, integrante da rede.
Embora a destruição contínua do planeta tenha efeitos amplos, a preocupação com a agenda de justiça climática ainda é limitada no Brasil. "Há uma cultura predominante de esquecimento dos últimos eventos extremos devastadores em todo o Brasil", comenta Naira Santa Rita, Fundadora e Diretora Executiva do Instituto DuClima. Ela é sobrevivente e deslocada climática do evento extremo que atingiu sua cidade natal, Petrópolis (RJ), em 2022.
Ela explica que democratizar e simplificar os conceitos de racismo ambiental e climático é essencial para apoiar as populações mais afetadas. "Assim eles podem defender os seus direitos básicos de cidadania que lhes são sistematicamente violados".
Mulheres são mais afetadas
De acordo com a secretaria da Organização das Nações Unidas (ONU) para alimentação e agricultura (FAO), as mulheres são as mais afetadas pelas alterações climáticas e suas consequências, ao utilizarem e interagirem diariamente com os ambientes naturais, a diversidade biológica e os ecossistemas.
Os efeitos são evidentes em diferentes níveis: desde a coleta de água para cozinhar e limpar, a utilização da terra para pastagem do gado, até à procura de alimentos em rios e recifes, à recolha de lenha. Além de precisarem ir mais longe em busca de comida e água, ficando mais expostas a vários tipos de violações, inclusive sexuais. É por isso que a crise climática é também uma questão feminista, como escreveu recentemente nossa colunista Fhoutine Marie.
Cerca de 80% das pessoas forçadas a sair de suas casas devido às mudanças climáticas são mulheres, conforme dados do Instituto de la Mujer. Considerando outros fatores, como o trabalho doméstico, todos os anos 3,8 milhões de pessoas, a maioria mulheres e crianças, são mortas pela poluição do ar causada pelo uso de energia impura para cozinhar e aquecer em domicílios. E recai sobre elas a responsabilidade de cuidar do lar e garantir a alimentação das famílias.
Racismo climático
As especialistas da Rede Vozes Negras mostram que desigualdades de raça, gênero e região nacional continuam a resultar no enriquecimento injusto de alguns, e na exploração total, no abuso e até na morte de outros. A discriminação está no cerne da injustiça ambiental e climática.
Ìyá Mônica, integrante da rede e presidente da Sociedade da Mulher Guerreira, lembra que os territórios negros e indígenas estão situados em locais escolhidos para receber descarte de lixo, emissões de gases tóxicos, rejeitos de minério e solo, e nas águas, pesca e garimpo ilegal, entre outras práticas inadequadas. "E nesses territórios também são negados o acesso aos direitos básicos e fundamentais para a população."
Na prática, a comunidade negra, indígena, quilombola, caiçara, ribeirinha, é direta e desproporcionalmente impactada pela expropriação de terras, pela poluição hídrica, atmosférica, pelos eventos climáticos extremos como secas, enchentes, inundações, deslizamentos de terras. Ao mesmo tempo, usufruem menos dos produtos do capitalismo ou têm seu acesso aos recursos naturais subtraído.
"A localização geográfica de certas regiões intensifica essa dura realidade, acentuando o impacto climático e ampliando os abismos sociais", destaca Naira Santa Rita. A "injustiça climática" para os países do sul é o que a ONU aponta como "zonas de sacrifício" globais – regiões tornadas perigosas e até inabitáveis devido à degradação ambiental – são, na verdade, "zonas de sacrifício racial e étnico". A mortalidade por eventos climáticos extremos (inundações, secas, etc.) foi 15 vezes maior em regiões mais vulneráveis na última década, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU (IPCC).
Soluções decoloniais e antirracistas
A crise climática representa sem dúvida a crise do capitalismo, mas também a crise da compreensão dos seres humanos por si próprios. Para a filósofa ecofeminista e freira Ivone Gebrara, estamos marcadas por um dualismo, como se a destruição de alguns não tocasse a destruição do todo. "Isso está nos mostrando o acúmulo de destruições que não gostamos de computar."
As mulheres, maiores vítimas da crise climática, têm que liderar o debate. "São elas que estão lidando diretamente com os deslizamentos de terra, os alagamentos, a seca dos rios, o perigo iminente que afeta as comunidades periféricas", comenta Alexandra Montgomery, diretora de programas da Anistia Internacional Brasil e coordenadora do projeto Vozes Negras pelo Clima.
A ideia da rede é colocar essas mulheres em contato e estimular a trocar experiências e soluções, abrindo para o grupo as portas dos espaços de tomada de decisão, como a COP28. "Nós lutamos para sair deste lugar de invisibilidade que este sistema neocolonizador, patriarcal e racista teima em nos colocar. Nada poderá ser decidido sobre nós sem nós!", diz Luciana Oliveira, que faz parte da rede e da Comissão de Atingidos por Barragem de Vila Regência Augusta e Entre Rios.
A rede permite que gente preta, pobre, quilombola, indígenas, mulheres e pessoas com deficiência falem sobre a interseccionalidade de suas lutas com a agenda climática. "Quando mulheres negras se aquilombam, há cura", comenta Amanda Souza, uma das 11 ativistas da rede.
O que esperar do futuro?
Comandado por Marina Silva, que defende uma política integral de combate a crise climática, o Ministério do Meio Ambiente, já tem ações em andamento, como a posição de autoridade climática para monitorar as políticas de clima; retomada do Fundo Amazônia; nova gestão no IBAMA e ICMBio. Sônia Guajajara, Ministra dos Povos Indígenas, também traz discussões relevantes sobre a exploração de recursos hídricos, desmatamento e mineração nos territórios indígenas.
Por outro lado, na COP28, a participação do Brasil foi contraditória, Lula afirmou ter vontade de ser uma liderança ambiental global, mas entrou na OPEP+, que concentra países produtores de petróleo. Vale lembrar também que 46,2% do Congresso é conservador, com foco em uma agenda desenvolvimentista, dificultando os avanços da agenda de justiça climática em Brasília.
Acesse a reportagem original aqui.