Amanhã, 11 de outubro, é celebrado o Dia Nacional da Pessoa com Deficiência Física. Se os motivos para celebrar são poucos, o momento deve aumentar a visibilidade das barreiras que ainda permeiam o acesso desta população ao trabalho. Segundo os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2022 voltada para pessoas com deficiência, conduzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a renda das pessoas com deficiência é 30% menor que a média no Brasil.
O rendimento médio real habitualmente recebido por mês relativo ao trabalho principal das pessoas com deficiência foi de R$1.860, equivalente a 70% do rendimento médio para o total Brasil (R$ 2.652), enquanto o rendimento das pessoas sem deficiência era de R$ 2.690, 1,4% acima da média nacional.
Os homens com deficiência (R$ 2.157) receberam cerca de 27% a menos que os homens sem deficiência (R$ 2.941). A diferença foi mais acentuada entre as mulheres com deficiência (R$ 1.553), que receberam aproximadamente 34% a menos do que as sem deficiência (R$ 2.347).
Ainda conforme a PNAD Contínua de 2022, existem 18,6 milhões de pessoas (8,9%) de 2 anos ou mais de idade com deficiência no Brasil. O levantamento informa que o total de pessoas com deficiência em idade economicamente ativa é de 17,5 milhões de pessoas, o que equivale a 10% do total da população com 14 anos ou mais. Porém, apenas 5,1 milhões estão ativamente na força de trabalho. Ou seja, 12,4 milhões de pessoas com deficiência na idade de trabalhar estão fora do mercado do mercado de trabalho – desse total, cerca de 7,7 milhões são mulheres.
Além dos aspectos geográficos, há ainda outras pontos relevantes destacados pelo IBGE. Das quase 19 milhões de pessoas com deficiência, 10,7 milhões são mulheres, o que representa 10% da população feminina no país. Os maiores percentuais da população com deficiência em 2022 foram entre mulheres, pessoas autodeclaradas pretas e na região Nordeste.
Num contexto mais amplo, as estatísticas do IBGE confirmam que o acesso ao mercado de trabalho é significativamente menor para PcDs: o nível de ocupação é de 26,6% entre as pessoas com deficiência, contra 60,7% entre a população brasileira total.
De acordo com Julia Drezza, consultora de diversidade e inclusão da Mais Diversidade, maior consultoria de diversidade e inclusão da América Latina, existem três tipos de barreiras principais que impedem o ingresso e o crescimento profissional de pessoas com deficiência no mercado de trabalho.
O primeiro inclui as barreiras comportamentais: pessoas sem deficiência sentem insegurança sobre como agir, gerenciar e desenvolver pessoas com deficiência, uma vez que pode demandar condutas diferentes daquilo que é esperado.
"O segundo grupo são as barreiras arquitetônicas, o que, na prática, significa que muitas empresas não têm seus espaços físicos preparados para a inclusão destas pessoas", conta Julia. E, por fim, temos as barreiras metodológicas, que levam em conta as dúvidas e as inseguranças de como garantir que a pessoa com deficiência vai executar seu trabalho com qualidade sem impactar os resultados", explica.
"Essas três barreiras impactam na inclusão e na retenção e muitas delas estão diretamente relacionadas a vieses inconscientes que já antecipam a ausência de capacidade. E, conforme os marcadores sociais vão se apresentando ou se somando, barreiras também vão sendo adicionadas. Uma mulher com deficiência é atravessada pelo machismo e pelo capacitismo. Se for uma mulher negra com deficiência, o racismo ocupa o lugar de outra barreira para a inclusão", lamenta a consultora.
Liderança feminina de PcD: mais um ponto sensível
O estudo "Diversidade, Representatividade e Percepção - Censo Multissetorial 2022", realizado pela consultoria de diversidade Gestão Kairós no ano passado, traz outros dados que corroboram a conjuntura de exclusão que cerca as mulheres com deficiência no Brasil.
Pelo levantamento, que levou em consideração informações de 26 mil profissionais de setores como Mineração e Metalurgia, Agronegócio e Automotivo, Mercado Financeiro, Atacado e Varejo, as pessoas com deficiência representam apenas 2,7% dos funcionários dessas organizações. Conforme os dados obtidos, entre as pessoas com deficiência que estão na liderança das empresas apenas 0,6% delas são mulheres e, no quadro geral, apenas 0,3%, número quase 4 vezes menos do que os de homens.
"Quanto mais interseccionalidade uma pessoa tem, maior vai ser a opressão social que essa pessoa enfrenta no dia a dia, principalmente em relação ao direito do acesso ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia. E quando a gente fala de pessoas com deficiência, essa lógica se reproduz", comenta Liliane Rocha, fundadora e CEO da Gestão Kairós, reconhecida como Linkedin Top Voice em 2023 e por quatro vezes eleita como uma das 101 Lideranças Globais e mais Proeminentes de Diversidade e Inclusão pelo World HRD Congress.
Para Liliane, é essencial olhar a pesquisa da Gestão Kairós também pelo recorte brasileiro e latino-americano. "A figura masculina, o patriarcado, o machismo, e a diferenciação de gênero entre homens e mulheres incidem em todas as estruturas sociais. Não à toa, segundo o nosso estudo, quando a gente olha para as liderança das empresas há 60% de homens brancos nos cargos. Então, evidentemente, se há um menor percentual de negros, se há um percentual menor de mulheres, quando a gente intersecciona informações como ser mulher negra, ser mulher com deficiência, ser mulher com 50 anos ou mais, o percentual cai mais ainda porque é um dado central, que é o ser mulher. E, sim, mulheres compõem 52% da sociedade brasileira, mas na liderança das grandes empresas brasileiras, no nível gerente acima, formam apenas 25% do quadro de profissionais", explica.
Cotas não são suficientes
Em vigor desde 1991, a Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (8.213/91) determina que empresas com mais de 1000 funcionários têm que ter 5% de pessoas com deficiência no seu quadro funcional. No entanto, quando observamos, por exemplo, o estudo "Diversidade, Representatividade e Percepção - Censo Multissetorial 2022", realizado com mais de 26 mil respondentes, é possível ver que tanto no quadro funcional quanto na liderança as pessoas com deficiência são somente 2,7%. Há uma sub-representatividade em relação à lei de cotas.
"No meu entendimento, isso acontece por mais de um motivo. Um deles é a falta de cumprimento das empresas em relação à Legislação sobre Acessibilidade. A falta de um elevador que tenha Braile ou que tenha sistema auditivo, além da ausência de um piso com uma marcação específica para pessoas com deficiência visual, de rampa, de estrutura adequada, de portas e baias, estruturas dos postos de trabalho para pessoas cadeirantes, por exemplo, inviabilizam e dificultam esse processo de ter pessoas com deficiência nas empresas", critica Liliane Rocha.
Outra questão, segundo a ativista e psicóloga PcD Priscila Siqueira, formada em Direitos Humanos pelo Instituto Maria da Penha, são os vieses capacitistas que temos na sociedade que reproduzem a crença equivocada de que pessoas com deficiência não são suficientemente qualificadas para o trabalho, quando na verdade, pessoas com deficiência, com as mais variadas deficiências físicas, intelectual, mental, estão aptas a ocupar posições na sociedade, como qualquer outra pessoa.
"Então, quando junta essa lacuna de falta de estrutura adequada, de acessibilidade e os vieses capacitistas das pessoas, o preconceito de fato, de julgar qualificar ou desqualificar pessoas com base na sua deficiência, tudo isso vai gerando essa sub-representatividade. O que está faltando é que as pessoas sejam de fato mais inclusivas, mais intencionais na contratação de pessoas com deficiência, e que esse processo seja realizado no paralelo com a possibilidade, com a organização, com a mudança das estruturas físicas, garantindo acessibilidade universal", afirma Priscila.
A Lei de Cotas existe, mas a fiscalização ainda não é tão forte quanto deveria ser. Conforme dados divulgados em julho deste ano pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), somente um terço das empresas com mais de mil trabalhadores e trabalhadoras cumpre a lei de cotas, índice que sobe para quase metade nas pequenas e médias companhias.
É notável que muitas preferem pagar multas pelo descumprimento da lei a trabalhar em prol da inclusão. "Às vezes a empresa não tem um orçamento anual robusto para investir em programas de acessibilidade, de diversidade e inclusão e não traz pessoas com deficiência de forma proativa e adequada nos processos de contratação. Na outra ponta está pagando termos de ajustamento e conduta de valores até seis vezes maiores do que seria investido num programa de diversidade", alerta Liliane.
Capacitismo estrutural
Ainda conforme dados do IBGE, apenas uma em cada quatro pessoas com deficiência concluiu o chamado Ensino Básico Obrigatório - outra desvantagem em relação ao mercado de trabalho. Para Katya Hemelrijk, CEO da Talento Incluir Consultoria, a forma de mudarmos o cenário da falta de oportunidade de estudo é fazendo com que as escolas, de fato, sejam inclusivas, começando pela acessibilidade.
"Hoje, 40% das escolas no Brasil, de acordo com o Censo de Educação de 2020, não têm nenhum tipo de acessibilidade. Quando nos deparamos com uma situação em que as escolas não estão prontas nem fisicamente, nem com a metodologia adequada, nem com o suporte de intérpretes de Libras, por exemplo, as crianças têm uma dificuldade muito grande de estudar e acabam fazendo parte dessa população que não consegue se formar", observa.
No ponto de vista de Katya, a percepção capacitista que vemos na sociedade sobre falta de rendimento e de menos entrega da pessoa com deficiência ainda é muito frequente. "A pessoa com deficiência ainda é percebida na sociedade como uma pessoa incapaz, que não produz, que precisa de ajuda, precisa ser cuidada, é a tal da 'caixa do coitadinho'. Esse comportamento tem uma influência muito grande, cultural e religiosa, inclusive, que compõe o chamado capacitismo estrutural. Muitas vezes começa dentro de casa, quando a própria família não acredita na capacidade de competência da pessoa com deficiência. Isso vai propagando para os ambientes corporativos", diz.
Katya afirma que o fato de a Lei de Cotas, por muito tempo, ter permitido a inserção de PcDs nas empresas pela deficiência e não pelo perfil para a vaga certa acabou reforçando estereótipos de incompetência e pouca produtividade, porque muitas das pessoas que foram contratadas não sabiam fazer aquilo para o que foram contratadas e não foram desenvolvidas para isso.
"Hoje há uma dificuldade grande de fazer com que as pessoas nas empresas acreditem que as pessoas com deficiência possam ser desenvolvidas. O ponto é sociedade acaba generalizando a pessoa com deficiência e olhando só para deficiência. Então, esse é um grande desafio ainda hoje", salienta.