A voz e o semblante são de um cansaço extremo amplificado por um quadro de sinusite. Também pudera: o bate-papo de Terra NÓS com Bruno Fagundes aconteceu numa terça-feira logo em seguida à estreia de "A Herança", espetáculo de temática LGBTQIA+ em cartaz no Teatro Vivo, na capital paulista. Dividida em duas partes, cada uma com duração de duas horas e meia, a peça está com ingressos esgotados até o final da temporada, em abril", conta o ator, que também é produtor do trabalho.
Falar da montagem brasileira de "A Herança", sucesso na Broadway que conquistou quatro Tony Awards (considerado o Oscar das artes cênicas), é o suficiente para a fadiga dar um tempo e os olhos de Bruno brilharem. "É uma história sobre nossa comunidade e que me emocionou muito na primeira vez que assisti em Nova York", relata o artista de 33 anos.
Em entrevista exclusiva, o ator fala sobre a omissão da palavra "gay" para o projeto ser aprovado durante o governo de Jair Bolsonaro, comenta como lidou e continua lidando com as comparações com o pai, Antônio Fagundes, e diz o que pensa sobre as cobranças sofridas desde a pré-adolescência sobre sua orientação sexual.
Terra NÓS: Você já pretendia produzir uma peça com temática LBTQIAP+ antes de assistir "A Herança" na Broadway?
Bruno Fagundes: Não, eu não costumo procurar espetáculos por temas. Em primeiríssimo lugar, para mim uma peça tem que oferecer um bom entretenimento e quando assisti "A Herança" já me senti absolutamente entretido. Apesar da longa duração, me senti imerso na história dos personagens e muito envolvido pela trama. A peça ainda tem muito humor e agilidade, além de ser uma construção coletiva, então várias coisas me interessaram nela. É claro que o fato de ser uma peça sobre nossa comunidade me emocionou muito. Acho que o texto de "A Herança" tem potencial para ser um novo clássico LGBT do teatro, assim como "Angels in America".
"A Herança" fala do conflito de gerações. Você ouviu pessoas de diferentes idades para ajudar no processo criativo?
Temos gerações diferentes em cena, artistas de vinte e poucos anos até 87 anos de idade, que é o caso da Miriam Mehler. Alguns momentos de ensaio foram muito intensos, porque estávamos realmente trocando vivências e falando sobre nossas existências e dores. Foi um processo interessante ouvir essas histórias e poder trocar com esse elenco tão incrível.
O Reynaldo Gianecchi em um dos papéis principais foi uma escolha essencial para o elenco?
Sim, foi uma escolha minha e do diretor Zé Henrique de Paula, que também é o produtor-sócio do projeto. Henry é um personagem com um perfil bem específico. Obrigatoriamente deveria ser um homem muito atraente e bonito, com uma certa seriedade, um mistério em volta dele. A gente achou que o Giane pudesse corresponder bem a essas características. Eu o conhecia só de "oi", socialmente, mas resolvi deixar o texto em suas mãos. Giane me ligou no mesmo dia e disse: "não ouse fazer essa peça sem mim".
Você acha que teria dificuldades de estrear uma peça LGBTQIAPN+ se ainda estivéssemos na gestão Bolsonaro?
Sim. Eu e o Zé conseguimos aprovação e captamos a verba para o espetáculo durante o governo Bolsonaro, mas precisamos omitir algumas informações do projeto para que ele fosse aprovado. De início fomos informados de que o projeto tinha palavras "erradas". Quando a gente omitiu a palavra "gay" do texto, a peça foi aprovada. Não acho que isso seja uma coincidência, nem uma coisa exclusiva do meu projeto. Já ouvi histórias muito parecidas com isso.
Mas omitir a palavra "gay" não descaracterizou a história?
Não, o que muda? Se eu disser que é um beijo ou um beijo gay, o que muda? Para mim não muda nada. É uma história sobre humanidade, perda, pessoas, amor. Mas para o governo anterior mudava, fazia diferença. E foi aprovado. A peça não foi descaracterizada, está completa no palco, sendo feita, sem nenhum pudor nem censura. Antes mesmo da leitura do conteúdo no governo anterior já havia uma censura. A peça estreou num momento de renascimento da cultura, de reconexão. É um momento simbólico de retomada e me sinto muito orgulhoso por ser um dos responsáveis. É motivo de celebração.
O medo da epidemia de AIDS nos anos 1980 e 1990 faz parte do enredo de "A Herança". Na sua opinião, quais são os medos atuais da população LGBT?
Os medos não sanaram, vemos altos indíces de infecção de HIV entre os jovens. A minha condição de privilégio permite que eu tenha mais informação sobre formas de proteção e cuidado, outras pessoas não têm. Os medos não foram embora. Não à toa a peça chama "A Herança", porque existe uma herança amarga e dolorida. Mesmo quem não foi impactado pela epidemia da AIDS nos anos 1980 foi impactado por campanhas de prevenção, de uso de preservativos, dizendo que a AIDS mata. De qualquer forma, a violência ainda existe e é muito constante. Os medos são os mesmos, só são adaptados um pouco ao nosso tempo agora. Essa herança é perene, só quem é da comunidade consegue compreender.
No início do ano você postou no Instagram uma foto beijando a bochecha do seu namorado (o ator Igor Fernandez), o que rendeu diversas matérias sobre sua sexualidade e o fato de ter se "assumido gay". O que você achou de toda essa repercusão?
Bom, a foto tinha vários contextos. Não falo que me assumi porque nunca fui "desassumido", nunca vivi uma vida dupla, nunca escondi absolutamente nada ou forjei uma realidade. No meu âmbito íntimo, pessoal, familiar, isso sempre foi 100% aberto. Qualquer pessoa do meio artístico sempre soube que sou um ator gay. Inclusive, quando chego num trabalho novo eu falo: "Olá, meu nome é Bruno e eu sou um ator gay". Nunca escondi nem quis esconder isso.
Só que desde cedo eu fui exposto a uma vida pública sem ser por minha escolha, mas porque tinha pais famosos [a mãe de Bruno é a atriz Mara Carvalho]. Quem não viveu isso ao crescer e se desenvolver e busca essa fama incessante, louca, de hoje em dia, das redes sociais, é porque não sentiu na pele os efeitos dessa vida superexposta. Nem entende o que é ter um pai e uma mãe em um processo de divórcio estampado em capa de revista enquanto você, filho, não sabe nem o que é isso.
Cresci um pouco recluso e preservando o meu direito à privacidade. A pressão da mídia enquanto eu crescia foi muito avassaladora, porque toda semana alguém tentava me tirar do armário. Eu era uma criança, um pré-adolescente, e ainda nem tinha uma carreira prolífera como hoje. Tentaram muito me tirar do armário e isso foi uma violência que eu sofri, ao meu ver.
Sobre a foto, só retribuí um carinho que recebi de uma pessoa que amo e aí virou notícia nacional de um jeito que eu, de certa forma, imaginava, mas não desse tamanho e proporção. Até hoje estou dando entrevista sobre isso e já faz quase dois meses. Perdi a conta de quantas matérias fizeram sobre isso. O que é bom por um lado, porque a gente tá falando sobre esse assunto, e nunca é demais, mas por outro eu comecei a questionar se não havia uma homofobia velada ali. Isso não tem que ser mais tabu, isso tem que ser naturalizado. Os agentes da mídia poderiam corroborar nesse sentido, de naturalizar, é o que é.
Seu último papel em novelas, o Renan de "Cara e Coragem" (TV Globo), era a personificação do homem tóxico e abusivo. O que você aprendeu com esse personagem?
Foi muito interessante fazer esse personagem. Inclusive, pelo fato de eu ser um ator gay, foi bastante enriquecedor, porque ele tinha uma personalidade e um modo de agir radicais e totalmente opostos aos meus. Tive que entender muito bem como era a ferramenta psíquica dele, como um cara que faz gaslighting costuma operar. Já conhecia muitas histórias, pois 99,9% das mulheres que estão à minha volta, desde a minha mãe até minhas irmãs e melhores amigas, todas sofreram abusos. Dou esse dado com muita tristeza. Muita gente veio falar comigo por causa do Renan, inclusive mulheres que se identificaram com a trama dele e conseguiram sair de uma relação abusiva. Esse é o maior presente que um ator poderia ganhar.
Acredito que você tenha crescido sob muitas comparações com o seu pai. Houve um momento em que se deu conta de que precisava atender apenas às próprias expectativas?
Sim, foi um processo interno intenso. Hoje, mais seguro e maduro, atingi um lugar confortável de me importar menos com o que as pessoas pensam e esperam de mim. Colocaram mesmo muita expectativa em cima de mim a vida inteira para que eu fosse o sucessor do meu pai em muitos âmbitos, principalmente nos parâmetros de masculinidade e sucesso. É absurdo comparar as carreiras, pois nós dois temos vivências, filtros e dores diferentes. Me sinto feliz em perceber que a partir da frustração que porventura eu possa ter gerado em alguém pode ter surgido uma surpresa, uma novidade. Mais do que se ater às expectativas, as pessoas podem se abrir para descobrir coisas novas. Quem vem me acompanhando com olhares atentos está vendo isso.