Quando os filhos ainda eram crianças, a arquiteta e escritora Joice Berth começou a falar sobre racismo com eles. Para ela, foi também uma forma de reparar uma dificuldade que enfrentou no seu passado: a falta de diálogo sobre o tema.
"Sofri muito racismo na infância e na adolescência. Uma criança negra é muito vulnerável. Quando eu era criança, meus pais sabiam (sobre o racismo), davam algum tipo de orientação, mas não tanto. A família sabia, toda pessoa negra sabe, mesmo quem fala que não sabe. Alguns ficam em negação ou não querem abordar o tema com profundidade", diz Joice, hoje com 46 anos, à BBC News Brasil.
Mãe de quatro filhos, um homem e três mulheres - com idades entre 26 e 20 anos -, ela conta que as conversas com os filhos desde pequenos foram uma maneira de tentar alertar sobre situações que poderiam enfrentar.
"Desde cedo, pensamos (ela e o pai das crianças, já falecido): vamos falar a realidade das coisas e mostrar pessoas negras legais que a gente admira. A gente sempre trabalhou essa coisa de autoestima com eles e de escutar as reivindicações deles", comenta. Conforme os filhos cresciam, diz Joice, as conversas sobre o tema ficavam mais profundas.
O diálogo entre pais e filhos sobre racismo voltou a ser debatido intensamente nos últimos dias após a repercussão de um ato racista contra dois filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. O casal estava em um restaurante em Portugal quando as crianças foram vítimas do ataque.
A agressora é uma mulher branca, que, segundo testemunhas, também ofendeu outros clientes negros. Ela foi levada para uma delegacia da Guarda Nacional Republicana, onde prestou depoimento e foi liberada.
Nesta segunda-feira (1/8), a polícia de Portugal confirmou ao Jornal Hoje, da TV Globo, que recebeu uma queixa formal sobre o caso e abriu uma investigação. Ainda segundo o telejornal, a mulher pode pegar uma pena de seis meses a cinco anos de prisão - tudo depende de como a Corte Portuguesa vai enquadrar o caso.
A atriz Giovanna Ewbank disse, durante a entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, que "fala muito sobre" racismo com os filhos.
"É muito cruel pensar que Titi e Bless, que têm 9 e 7 anos, já têm que ser fortes. Que eles já precisam ser preparados para combater o racismo, sendo que com 9 e 7 anos são duas crianças que teriam que estar vivendo sem pensar em absolutamente nada", lamentou a atriz durante a entrevista.
Ewbank disse ainda como o fato de ela ser branca pode ter mudado a forma como foi encarada a sua reação após os filhos serem vítimas do ato racista - a atriz enfrentou a responsável pelo ataque e contou que houve confronto físico.
"Acho que ela nunca esperava que uma mulher branca fosse combatê-la como eu fui, daquela maneira. Eu sei que eu, como mulher branca, indo lá confrontá-la, a minha fala vai ser validada. Eu não vou sair como a louca, a raivosa, como acontece com tantas outras mães pretas, que são leoas todos os dias, assim como eu fui nesse episódio", disse Ewbank ao Fantástico.
Para Joice, se uma mãe negra reagisse de forma semelhante à atriz, a situação poderia ter outro contorno. "Se fosse uma mãe negra no Brasil, possivelmente iam depreciar, falar que é doida e agressiva, violenta e ocorreria um racismo triplo, envolvendo as crianças e a mãe."
'Enquanto o racismo reverberar na sociedade, não há como ignorar'
Para Joice, conversar sobre racismo com os filhos foi um "um processo natural". "Não deveria ser, mas é. Enquanto o racismo reverberar na sociedade, não há como ignorar. É preciso lidar. Sou muito prática. Quando a gente tem que resolver um problema, é preciso resolver a fundo", diz.
Ela relembra que a falta de diálogo sobre os pais em relação ao tema durante a sua infância e adolescência tornou ainda mais difícil enfrentar o preconceito.
"Desde os cinco anos, quando entrei na escola, sofri racismo por conta do meu cabelo. A minha mãe fazia tranças e outras crianças queriam pegar. Os professores falavam que isso tumultuava as aulas. Além disso, sofri várias formas de racismo", relata.
Durante a adolescência e o início da vida adulta, ela concluiu que o racismo não era "coisa da sua cabeça". Isso ocorreu, diz Joice, quando teve contato com o hip-hop e também ouviu outras pessoas negras, como os Racionais MC's, falando abertamente sobre o racismo. "Foi libertador. Vi que não é maluquice, que realmente existia um problema na sociedade e não comigo", diz Joice.
E foi justamente essa ideia de que o problema está na sociedade que ela quis que os filhos entendessem desde pequenos.
"Quando a gente começou a falar sobre racismo, eles (os filhos) ficaram mais quietos e ouviram. Conforme foram vivenciando as coisas, fomos estimulando o debate, até que se tornou uma constante em nossa casa", diz Joice.
Ela se preocupou em incentivar a autoestima das crianças e fazer com que elas aceitassem suas características. "Conversamos também sobre colorismo (que define os negros de acordo com a tonalidade de pele e de outros traços físicos) e explicamos como a condição de ter uma tonalidade mais clara funciona sensivelmente diferente."
Assim como outras tantas crianças negras, não demorou para que os filhos dela encarassem o racismo. Ela conta que eles logo foram alvos de apelidos jocosos e ouviram comentários preconceituosos. Essa situação, diz Joice, fez uma de suas filhas ficar mais calada e perder a vontade de estudar.
"A minha filha chegou chorando porque falaram que o cabelo dela era uma vassoura, disseram que ela não tomava banho e por isso era daquela cor, que os pais dela eram macacos… Precisei fazer uma intervenção maior, fui na escola dela, falei com a diretora e pedi pra chamar os pais dos alunos para fazerem algo. Mobilizei a escola inteira", diz.
"Depois do relato dela, outras crianças negras da escola, que era uma escola pública e tinha muitas outras crianças negras, também começaram a falar sobre o que passavam", relembra Joice.
Já em relação ao filho, ela relembra que a situação mais marcante em relação ao racismo aconteceu quando ele foi parado pela primeira vez pela polícia.
"O meu filho começou a ser parado pela polícia aos 17 anos. Lembro que na primeira vez ele chegou em casa meio pálido, extremamente abalado e não falou nada. Tomou banho e não quis comer nada, só deitou. Só depois de dois dias consegui que ele me contasse que foi parado pela polícia", relata.
"Falaram que ele tinha roubado um celular. Ele disse que a sorte foi que isso aconteceu perto de onde ele pegava ônibus e as pessoas que estavam no ponto falaram que ele estava vindo do trabalho. Ele ficou bem mal depois disso e voltou para as atividades normais aos poucos, mas com medo", diz Joice.
Ela reflete que as mães de pessoas negras têm preocupações distintas quando se trata de filhos homens ou mulheres. "Quando é menino, a preocupação é com a abordagem policial. Quando são meninas, a principal preocupação é fazer com que a autoestima delas não seja destruída quando chegarem na idade de namorar."
"Feridas profundas"
Mas nem sempre falar sobre racismo é tarefa simples para os pais. Muitos negros podem evitar abordar o tema com os filhos porque ísso também pode ser uma forma de mexer em feridas, avalia Joice.
"Esse diálogo pode ser muito precário até porque muitas vezes os pais também estão muito machucados pelo racismo. Ao mesmo tempo em que falar sobre isso pode ajudar, também pode atrapalhar, porque acaba revivendo traumas dos pais, é inevitável."
"Você vê sua filha chorando porque riram do cabelo dela e acaba lembrando quando riam do seu. Ou quando você vê seu filho sofrendo uma abordagem policial e lembra como ficava apavorada quando isso acontecia com seus irmãos ou com o seu pai", acrescenta.
No caso de Joice, ela frisa que o racismo causou "feridas profundas", que até hoje fazem parte da vida dela. "Mas hoje tenho mais facilidade para falar com as pessoas sobre isso, até mesmo pelos caminhos que minha vida profissional seguiu", pontua.
Mas a arquiteta e escritora destaca: é fundamental entender que o racismo é uma situação que a pessoa negra vive, "não que ela causa".
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62386331