Só quando completou 17 anos que Juliana Fernandes * percebeu que tinha menos liberdade e menos incentivo para pensar em uma carreira bem sucedida do que os seus irmãos. Enquanto o caçula, ainda com 14 anos, podia passar o dia com os colegas, ela só podia sair aos finais de semana e nada muito além dos encontros na pracinha do condomínio onde mora em um bairro periférico de Mogi das Cruzes (SP). Com uma lista de tarefas domésticas para cumprir todos os dias, a escola se tornava exaustiva e pensar em uma carreira profissional sólida não era uma prioridade.
Todos os dias, a jovem precisava cumprir uma lista interminável de tarefas, entre elas deixar a casa limpa e o jantar pronto para quando sua mãe e o irmão mais velho chegassem do trabalho. “Foi muito triste quando fui cobrar a minha mãe sobre a divisão das tarefas. Eu queria estudar, ter uma profissão, poder testar até achar o que quero fazer, como meu irmão mais velho fez. Mas ela me respondeu que como ‘a mulher da casa na ausência dela’, eu deveria ser apoio para os meus irmãos, que assumem o papel de homens da casa e ajudam a complementar a renda. Meu irmão mais novo não lava um prato, não vai bem na escola e nunca é cobrado por isso”, argumentou. Em 2020, mesmo durante a pandemia de Covid-19, ela concluiu o ensino médio e nunca mais pisou em uma sala de aula. “Um ano antes eu entrei em depressão. A falta de perspectiva me fez minguar dentro de casa”, contou.
Juliana é uma das milhares de jovens brasileiras que são atravessadas pelas questões de gênero. Segundo o estudo “Por ser Menina” (2021) da Plan Internacional, que ouviu 2.589 meninas de 14 a 19 anos, em 10 cidades brasileiras localizadas nas cinco regiões do País, 89% das meninas compreendem que homens e mulheres não têm os mesmos direitos garantidos na prática.
O estudo mostrou ainda que 84% das meninas entrevistadas consideram que meninos/homens têm mais oportunidades e vantagens do que meninas/mulheres. As limitações impostas pela forma como a sociedade molda os papéis de gênero são violentas, sutis e silenciosas. O estudo mostrou que 67% das meninas ouvidas são responsáveis pelas tarefas domésticas em casa, enquanto 31,2% dos meninos possuem a mesma responsabilidade. Para 54% das jovens, houve aumento da carga doméstica durante o período de isolamento social provocado pela pandemia de Covid-19. Sem uma divisão igualitária, os meninos tendem a ter mais acesso ao trabalho, sociabilidade e lazer em ambientes externos e públicos do que as meninas.
“Para 57% das meninas ouvidas, a rua é o ambiente onde as meninas sentem mais medo. Isso faz com que os ambientes onde as meninas podem vivenciar sua juventude com tranquilidade sejam muito mais limitados, em relação aos meninos. É uma violência naturalizada, uma vez que a liberdade dessa jovem é reduzida para a sua própria segurança. Para sair de casa, as meninas precisam de uma justificativa, enquanto os meninos são mais livres para vivenciar espaços públicos”, considerou Gabriela de Oliveira da Tewá 225, consultoria responsável pela coordenação executiva da pesquisa.
“Como os meus pais são separados, é meio que isso: a gente pega o papel da segunda mãe. No meu caso, fui mais privilegiada porque tinha a nossa avó. Mas a medida que ela vai envelhecendo eu vou pegando mais esse cargo. É engraçado porque vai tendo uma mulher que vai aparecendo, uma vai substituindo a outra nesse cargo”, relatou uma jovem de 19 anos ouvida pela pesquisa em Manaus.
Apesar da casa ser o ambiente onde as meninas declararam se sentirem mais protegidas (77%), também é dentro de casa que elas declararam sofrer violência física (30%), sexual (24,7%) e psicológica (29,5%).
Estudos e renda
A interrupção dos estudos também afeta as meninas ouvidas pela pesquisa. Apesar da pandemia de Covid-18 ser o principal motivo da desistência na região Norte, a “perda da vontade” de estudar é um dos fatores apontados por meninas de todas as regiões do País.
A maior parte das meninas também está inserida em trabalhos informais e instáveis, apesar de remunerados, como cuidadoras, trabalho em casas de família e bicos. Em 37,25% dos casos, a jovem em questão era negra. “O impacto da desigualdade de gênero vai ficando maior, conforme as características sociais como raça, renda e localização geográfica vão se interseccionando. Uma menina negra, que faz parte de uma família com renda de até um salário mínimo tem uma trajetória de vida muito diferente daquela que é branca e tem uma renda familiar maior. As meninas negras também são mães mais cedo e as de baixa renda têm menos acesso à saúde sexual/reprodutiva, por exemplo. A desigualdade afeta todas as meninas, mas o impacto para cada uma é único”, destacou Raíla Alves, gerente de empoderamento econômico e de gênero da Plan International Brasil.
Perspectivas para novas gerações
Apesar de identificar violência de gênero e as limitações provocadas desde cedo pela desigualdade, 85,7% das meninas declararam ser felizes por serem do sexo feminino. O estudo mostrou ainda que o foco das jovens está na conquista pela independência e não no casamento. “A sociedade é a mesma, as violências de gênero que já eram sofridas por gerações anteriores também. O que muda é que temos uma geração de meninas mais conscientes. Nos estados de São Paulo e Maranhão, por exemplo, muitas meninas já participam de projetos sociais, discutem questões de gênero e se enxergam como elementos de mudança”, destacou Gabriela.
A pesquisa recomenda estudos e políticas públicas que levem em consideração a pluralidade dos perfis das meninas e trabalhos interseccionais, a criação de ambientes seguros e igualitários (como maior representação feminina na política, por exemplo), além de treinamento de agentes de saúde para o atendimento de adolescentes. “As meninas de hoje são as mulheres de amanhã. Precisamos olhar a juventude feminina de forma mais plural e considerar que se criamos espaços seguros para elas hoje, teremos mulheres com vidas mais justas no futuro”, defende Raíla.
“É doloroso saber que o mundo é assim, mas também acredito que um dia vai ter um grupo de mulheres ajudando mulheres a calar um pouco mais essa voz do machismo.” disse uma jovem de 18 anos, ouvida pela pesquisa em Porto Alegre.
*Os nomes das personagens ouvidas nesta reportagem foram alterados ou suprimidos para preservar a identidade das jovens, conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente.