Neuza Nascimento: de empregada doméstica a escritora e colunista

Prestes a lançar seu primeiro livro de contos, Neuza cursa jornalismo e realiza seus sonhos após trabalhar com faxina por 48 anos

26 jul 2022 - 13h48
(atualizado às 14h52)
Imagem mostra a mulher negra, escritora e coluinista Neuza Nascimento, com um turbante na cabeça
Imagem mostra a mulher negra, escritora e coluinista Neuza Nascimento, com um turbante na cabeça
Foto: Imagem: Acervo Pessoal / Alma Preta

"Isso é um romance, Neuza. Você é uma escritora". Essas foram as palavras ditas por um namorado que serviram de estopim para que a ex-empregada doméstica Neuza Nascimento, de 62 anos, reacendesse dentro de si a paixão que carrega desde a infância: a escrita.

Vinda de uma família mineira humilde, a caçula de dez irmãos praticava a escrita a partir de cartas enviadas aos familiares distantes. Neuza, como muitas outras mulheres negras, começou a trabalhar cedo no ofício de babá e, desde os 8 anos de idade, o amor pelas palavras teve que ser substituído por faxinas, roupas para passar e patrões que desdenharam de seus sonhos.

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Com a promessa de trabalho na casa de uma família carioca, Neuza migrou de Minas Gerais para o Rio de Janeiro ainda muito jovem.

"Um certo dia chegou um casal na rua procurando meninas para trabalhar e, claro, os vizinhos os levaram até minha casa, já que minha mãe tinha muitas filhas. Falaram das vantagens de deixar uma de nós ir com eles, pois teríamos uma vida melhor, estudaríamos e minha mãe receberia um pagamento todo mês", relembra a escritora.

O convite levou Neuza Nascimento para Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, em uma casa em que a ex-empregada doméstica tinha que dormir no chão da sala, forrado por um pano. Aos 11 anos, as irmãs mais velhas de Neuza compraram um barraco na favela de Cordovil, na Zona Norte da capital, o que possibilitou a mudança da família para o estado do Rio de Janeiro.

"Moramos em Cordovil por mais ou menos dois anos. Logo depois a favela foi removida para o bairro de Del Castilho. Talvez um ano ou dois depois, minha mãe veio a falecer e uma das irmãs mais velhas me levou para morar na casa onde ela trabalhava, em Copacabana", conta.

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Filha de criação?

"Quando cheguei, fui abraçada pela patroa dela. Ela disse que eu era bonitinha e ia ser sua filha de criação", relembra Neuza Nascimento.

Tudo fluía às mil maravilhas na casa da patroa. A escritora recorda que foi matriculada na escola e que sua "mãe de criação" lhe comprou materiais escolares, os quais Neuza cuidava com muito zelo.

"No primeiro dia de aula, coloquei meu uniforme e, me sentindo linda, me dirigi à porta da sala para sair. A patroa me chamou e perguntou para onde eu ia. Respondi que ia para a escola. Daí ela falou 'está bem, mas você entra e sai pela porta de serviço'. Ou seja: esquece essa coisa de filha de criação", ri Neuza.

Na volta da escola, Neuza foi informada que seria a arrumadeira nos momentos em que estivesse na casa. E ela fazia de tudo. Levava o cachorro para passear, limpava a casa e servia a mesa. Só podia comer depois de servir o jantar, a sobremesa, o cafezinho e tirar a mesa.

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Após um episódio de racismo envolvendo o filho dos patrões, a situação de sua permanência na casa se tornou insustentável.

"Um dia, não sei o que fiz de errado e o rapaz disse: 'sua negrinha, macaca preta, tem que voltar pro tronco'. E daí para frente resolveram que iam me colocar no 'meu lugar'. Saí dessa casa e da escola com 14 anos", diz a escritora.

Prática

Em meados de 2003, convidada a participar de um projeto social chamado "Mulheres em Ação", que premia e conta a história de mulheres de destaque na comunidade, Neuza e outras mulheres trouxeram luz sobre o que mais as emocionaram ao longo dos anos realizando trabalho social. A escritora esteve à frente da ONG Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade (CIACAC) por 15 anos, conciliando o serviço social com o trabalho como empregada doméstica.

Os contos do projeto "Mulheres em Ação" viraram uma peça teatral e durante a exibição estava presente outro grupo mulheres também voltadas a projetos sociais, que convidaram as envolvidas a participarem de uma ação para crianças e adolescentes. O programa acabou se tornando uma oficina de contos escritos, segundo Neuza.

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"Eu queria contar história para as crianças, mas quando eu começava a contar, as crianças ficavam 'comendo mosca', se distraiam. Então, um escritor apareceu no dia da oficina e disse que iria nos ensinar a escrever histórias", relembra.

O nome do escritor e voluntário no projeto é João Vaz. Já no primeiro encontro - que ocorria semanalmente - ele passou uma lição de casa para as mulheres da oficina. "Nós tínhamos que escrever um conto que tivesse um animal, um adulto e uma criança", diz a escritora.

No entanto, devido às tarefas repassadas por João Vaz nas oficinas de escrita, o número de alunas diminuía semanalmente. "Creio que na terceira ou quarta semana só tinha eu e ele. E ele passou a ser meu professor particular. Com isso, eu fui fazendo as tarefas e exercitando a escrita", comenta Neuza. Os encontros duraram cerca de três meses.

'Fica quieta e assiste à aula'

Após um desentendimento com João Vaz, que havia pontuado erros em um dos contos de Neuza - correções que ela não concordava, os dois se afastaram por alguns anos. Depois de um tempo, Neuza reencontrou o amigo e foi falar com ele, que na ocasião a apresentou para os colegas como uma grande escritora, mas "que não tem vergonha na cara, porque não escreve".

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O encontro possibilitou que João mostrasse um dos contos da ex-empregada doméstica para a dona do Instituto Estação das Letras, que ficou impressionada com a técnica de Neuza.

"João me ligou um dia me oferecendo uma bolsa para uma oficina de escrita. Ele disse que a dona do Instituto Estação das Letras havia me oferecido 50% da bolsa e o professor que daria a oficina, os outros 50%", diz.

O curso em questão se chamava "Oficina de Contos - Nível Avançado". Neuza lembra que se sentiu intimidada, e ali ela descobriu que João Vaz era também um dos alunos e que a maioria dos participantes já eram escritores de renome.

"E eu falei: 'João, isso daqui é avançado'. E ele disse 'fica quieta e assiste à aula'. Todos ali eram brancos, menos eu. E a tarefa era difícil: toda semana eu tinha que criticar os 13 contos dos meus colegas de classe e escrever um. Foi um negócio louco, que eu não sabia que era capaz", destaca a escritora.

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"Um dia, um dos meus contos veio com a frase 'imprima com louvor'. Eu não sabia o que significava, mas depois descobri que não foi necessária nenhuma correção. Me senti orgulhosa, pois era isso que eu queria quando entreguei meu conto ao João Vaz e ele disse que não havia gostado", pondera. A oficina em si rendeu à Neuza Nascimento 20 contos, que mais para frente seriam reunidos em um livro.

Sonhos

"Meu sonho é poder viver da minha escrita e somente da minha escrita. Depois de trabalhar 48 anos como empregada doméstica, agora eu estou mais perto de realizar esse sonho", enfatiza a escritora Neuza Nascimento.

Recentemente, ela criou um crowdfunding para angariar fundos para a publicação do seu primeiro livro de contos: "A Revolta de Marinalva". O livro é formado por 16 contos que começaram a ser escritos em 2003, entre uma faxina e outra, no Rio de Janeiro. O dinheiro já foi arrecadado, e no momento Neuza se prepara para o lançamento oficial da obra.

Além disso, ela é colunista fixa do site Lupa do Bem. A Coluna da Neuza conta histórias de projetos sociais de sucesso e é mais um degrau que a ex-empregada doméstica - agora estudante do 3º período de Jornalismo - conseguiu alcançar a partir de sua paixão pelas palavras.

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Neuza afirma ter esperança de que sua história de vida, que pode ser conferida nos contos que compõem sua obra literária, sirva de inspiração para que pessoas inseridas em um contexto de escassez criem o hábito da leitura.

"É uma coisa que tem que começar muito da base. Mas quem sabe pode servir para que um semelhante meu veja e fale: 'se ela conseguiu eu também consigo'. Esse é o plano", finaliza a escritora.

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