Só aos 29 anos a empresária Gabriela Augusto conseguiu comemorar uma conquista que para a maioria das pessoas cisgênero (que se identifica com o gênero atribuído no nascimento) não é um problema cotidiano: o direito ao nome. “Na Faculdade de Direito eu aprendi que ele é algo absoluto, ilimitado, imprescritível e inexpropriável. Bonito, né? É parte do que chamam de "direitos da personalidade", que tem relação direta com o princípio da dignidade da pessoa humana”, escreveu em uma postagem feita nas redes sociais, exibindo orgulhosa sua certidão de nascimento com o nome retificado. Para pessoas trans, fazer empresas, instituições e até pessoas do círculo social esquecerem o chamado “nome morto”, é um processo doloroso e que pode durar muito tempo.
‘’O nome cada vez mais começou a se tornar um problema cotidiano pra mim”, conta a empresária que começou, no final de 2021, a busca pelos documentos para conseguir a tão sonhada retificação. Nessa etapa, ela começou a enfrentar uma série de situações que a constrangeram, como a dificuldade de embarcar em um avião: o teste de Covid, obrigatório na época, estava com o nome social e o cartão de embarque com o nome de registro. Ela narra que também já teve que riscar o nome no cartão de crédito , pois sempre que enviavam um novo, esqueciam de colocar o nome social. Todos esses motivos levaram a mulher a acionar sua equipe jurídica para auxiliá-la no processo.
“Somos iguais, sim, na nossa dignidade, mas temos o direito de ser diferentes em nossa pluralidade e nossa forma de ser”, falava a então Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, ao votar a favor da retificação dos documentos de registro civil de pessoas trans, em 2018, dando a possibilidade de que pessoas trans e travestis, com idade acima de 21, possam retificar sua certidão, ou seja, mudar informações como, nome e gênero, de acordo com a sua auto identificação.
A decisão rompe com o pensamento binário de que para ser uma pessoa trans ou travesti é necessário passar por procedimentos estéticos e cirúrgicos, o que não é, já que a disforia de gênero não está presente em todos corpos trans. A decisão do STF também reafirma a existência do grupo, ao ter o nome com o qual se identificam registrado e reconhecido legalmente. Um ano depois da decisão dos ministros, cerca de 2.022 pessoas já teriam retificado o nome em algum cartório do Brasil.
Porém os desafios continuam a existir. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), há muitos relatos de pessoas trans que tiveram seus pedidos de retificação negado.E são muitos os documentos necessários para que uma pessoa consiga “mudar de nome”: certidão de nascimento, RG, CPF, título de eleitor, comprovante de endereço, certidão de distribuidor cível, certidão de distribuidor criminal, certidão de execução criminal, e para quem tiver, CNH, certidão de casamento, certificado de reservista e passaporte. Alguns desses documentos podem levar um tempo para serem emitidos pelo cartórios, outros tem prazo de validade, logo retificar a certidão demanda uma estratégia.
Para Gabriela o processo foi “tranquilo”. Isso porque ela contou com uma equipe que a auxiliou na emissão dos documentos necessários. A nova certidão ficou pronta em poucas semanas e ela era tratada pelo nome social pela equipe do cartório mesmo durante o processo. Agora, o desafio é atualizar todos os seus dados cadastrais registrados em outros serviços, etapa que não estava muito clara para ela.
Ação na Justiça
O economista Páris Antônio Estevan, 27, de Barueri, São Paulo, retificou sua certidão no começo de 2020. O rapaz comemora a sorte que teve por ter nesse processo o apoio da Casa 1, um centro de acolhimento e cultura LGBTQIA+ de São Paulo, onde era voluntário. Não fosse esse apoio, o processo seria ainda mais moroso e caro.
Por causa da pandemia de Covid-19, que suspendeu o atendimento em cartórios e outros órgãos do governo, a emissão e atualização dos documentos necessários demorou mais de 6 meses. Mas o maior problema ainda estava por vir. Páris foi atualizar seus dados nas instituições bancárias e se deparou com a transfobia nas instituições.
Mesmo com todos os documentos atualizados com o nome social, o sistema do banco em que precisou abrir uma conta-salário “ressuscitava” o seu nome morto. Com a demora para resolver esse problema, ele decidiu mover uma ação contra o banco. Mas três dos seis bancos que ele tinha conta ativa também não quiseram atualizar o cadastro ignorando o nome morto. “Foi um desgaste físico e mental. Fora o tempo que eu precisei perder para mover as ações contra os bancos”
Ao procurar uma advogada para se consultar e entender melhor o'que fazer legalmente o economista se deparou com uma informação que o entristeceu, a possibilidade do “nome morto’ de Páris aparecer em outros documentos é alto, pois órgãos como do Ministério da Fazenda não apagam o antigo nome, apenas o substitui.
Direito ao Esquecimento
O direito ao esquecimento é um debate que permeia a população trans retificada. O conceito nasceu nos Estados Unidos e foi evoluindo com o tempo. No Brasil existem bons exemplos do direito ao esquecimento, mas na esfera trans e travesti existem poucos relatos sobre o assunto. Mas fica claro que o direito ao esquecimento é uma ferramenta de dignidade: “Como ser livre carregando correntes tão pesadas?" considera Páris.
Como atualizar os documentos?
Atualizar os dados nos documentos, bancos e órgãos do governo é um desafio, a ONG Poupa Trans, entendendo essa demanda criou em parceria com a Casa 1 a cartilha “Retifiquei, e agora?” , com o passo a passo para pessoas trans e travestis atualizarem seus dados.