Aos 65 anos recém-completados, o multiartista Leo Moreira Sá adora viver em paz numa casa "no meio do mato", segundo sua própria descrição, em Parelheiros, na zona sul da capital paulista. Além do dócil pitbull Tobias, seu grande amor, lhe fazem companhia outros seis cães, 13 gatos e quatro aranhas de estimação. Os sons dos pássaros e macaquinhos nas árvores cortam o silêncio da solitude que Leo tanto preza, mas a calmaria é apenas aparente.
O ator, designer de luz, dramaturgo, roteirista, jornalista e cofundador do CATS Coletivo de Artistas Transmasculines é movido à criatividade e indignação, ambas em doses intensas. "Há dificuldade em entender e respeitar as identidades transmasculines e isso acontece até na comunidade LGBTQIAPN+", afirma ele.
Leo Moreira Sá foi o primeiro ator a se assumir como pessoa transmasculina e a primeira pessoa trans a ganhar um prêmio Shell no Brasil, em 2012, pelo trabalho como iluminador do espetáculo "Cabaret Stravaganza", montado pela companhia de teatro Os Satyros. Ele também atuou na peça e, em uma cena, pedia ao público que contribuísse para que pudesse realizar sua cirurgia de mastectomia.
De lá para cá estrelou vários trabalhos significativos, como o papel de Fran, o pai trans de Oscar (Gabriel Godoy) da série "O Negócio" (2018), da HBO Max. "Quando recebi o texto do teste, eu imediatamente recusei fazer porque era extremamente transfóbico. A produção de elenco se propôs a reescrever o texto. Fiz o teste e passei, mas avisei que só faria o personagem se pudesse intervir em algumas falas. Algumas foram reescritas, mas até o fim das gravações fui pressionado para gravar cenas que não representavam de forma alguma as vivências de pessoas trans", conta.
Para o multiartista, que se define ainda como artivista, é louvável que a TV e o cinema estejam se empenhando na prática da representatividade trans nas produções. "Dificilmente teremos um novo exemplo de transfake como foi o Ivan da novela 'A Força do Querer' da Glória Perez. Porém, tanto na arte como na sociedade, de modo geral, as identidades trans femininas são mais bem vistas e mais aceitas nos espaços, mesmo com toda a fetichização. Pessoas transmasculines seguem invibilizadas", critica.
O projeto CATS surgiu justamente para jogar luz sobre o assunto, pelo menos no mercado artístico. Não à toa, o coletivo foi indicado ao último prêmio Shell na categoria “Energia Que Vem Da Gente”, que premia iniciativas de inovação. Não levou o troféu, mas isso não desanimou Leo. "O CATS é um grupo que conecta cerca de 100 artistas de diversas áreas em todo o Brasil e tem como propósito dar voz e visibilidade a essa população que, ao meu ver, sofre uma espécie de misoginia às avessas", pontua.
A saúde mental dos homens trans é um assunto caro a Leo, que cita um estudo de 2015 conduzido pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e pelo Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Gerais. O estudo diz que 85,7% de pessoas transmasculinas já pensaram em suicídio ou tentaram cometê-lo. "Não foi por acaso que o coletivo CATS foi fundado em setembro, o mês das campanhas de prevenção ao suicídio", relata.
Para Leo, a transfobia é diferente para as identidades. "Enquanto as mulheres trans e as travestis são mais expostas à violência física e aos crimes de ódio, a nossa morte vai ocorrendo aos poucos. Somos vítimas de violências mais difíceis de detectar, como sarcasmos, desqualificação, desrespeito, piadinhas sobre a aparência e a identidade. São olhares que derrubam e quebram por dentro, levando a questionar a própria capacidade. Nós, transmasculines, não nos matamos. Somos suicidados", explica o artista, lembrando a perda do colega Popó Vaz, caso que ganhou repercussão nacional, em março do ano passado.
No passado, banda de rock e prisão
Questões identitárias são recorrentes nos trabalhos do artista, sendo que o mais icônico, sem dúvida, foi o espetáculo "Lou e Leo" (2013), comandado pelo diretor e artista plástico Nelson Baskerville. O texto, escrito por Leo, conta a sua própria trajetória desde a fase antes da transição. A Lou do título se refere ao seu nome original de batismo, Lourdes Helena.
Caçula de nove irmãos, Lou nasceu em São Simão, interior de São Paulo, e mudou-se na adolescência para São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, na época da efervescência dos movimentos e greves de metalúrgicos e do surgimento do Partido dos Trabalhadores.
Lou foi baterista de As Mercenárias, banda de punk rock que marcou a geração dos anos 1980. Fez Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP) e foi ativista do ALF (Ação Lésbico-Feminista). "Nessa época, fui discriminado por ser uma pessoa transmasculina, embora eu não tivesse referências ou informações que me fizessem entender que, na verdade, eu estava sofrendo transfobia num grupo de mulheres cisgêneras lésbicas", recorda.
Lou foi casada durante quase dez anos com uma travesti – "Gabriela Bionda, a quem amei intensamente" e, após envolver-se com drogas e tornar-se traficante, passou cinco anos na prisão. "No meu último ano perdi a minha mãe, que me aceitava e me amava com todos os meus defeitos. Saí de lá com duas sacolinhas, sem ter para onde ir. Até hoje não tenho contato com nenhum de meus irmãos, nem para tomar um café", relembra.
Instalado numa quitinete devido à ajuda de um antigo colega da USP, foi retomando a vida, se encantou com o universo do teatro e se entendeu como homem trans. Toda essa história, segundo ele, ainda vai virar um livro. "Sou um cara muito feliz e viver tudo o que eu vivi e chegar até aqui é algo maravilhoso. Na chácara, em contato com a natureza, repenso toda a minha humanidade. Já vivi praticamente o dobro da expectativa de pessoas trans no Brasil, que é de 35 anos. Só gostaria de ter um pouco mais de estabilidade financeira para resgatar e construir um abrigo para cães idosos e, claro, ver pessoas trans recebendo tratamento digno e respeito", finaliza.