Em abril deste ano, Michele* saiu com um homem que conheceu em uma festa. Durante o sexo, ele retirou o preservativo sem seu consentimento e, duas semanas depois, ela descobriu que estava grávida. "Me senti suja e assustada. Estava lá o embrião de uma pessoa que me violentou logo depois sumiu", conta à Elástica.
Acontece que o ato de retirar preservativo no decorrer da relação sexual sem consentimento, chamado stealthing, é considerado crime. E jovens que passam por esse tipo de abuso estão amparadas pela lei se precisarem realizar o aborto. "Procurei ONGs que poderiam me ajudar e encontrei o Milhas Pela Vida das Mulheres. Entrei em contato e elas prontamente me atenderam e me acolheram com muita empatia", afirma.
O Milhas é um grupo criado pela cineasta Juliana Reis, em 2019, que visa orientar mulheres que precisam do procedimento. "Tudo começou quando ela postou uma reportagem no Facebook de mulheres que queriam ir para a Colômbia abortar e perguntou nas redes quem poderia doar milhas", explica Maíra Marques, responsável pela comunicação. "Mas quando as fronteiras fecharam durante a pandemia, nós focamos na questão brasileira porque muitas que nos procuravam se tratavam de casos permitidos pela lei nacional."
Hoje, elas atuam em duas frentes: a da ação direta, que trabalha com o aborto legal no Brasil e em países vizinhos, como Colômbia, Argentina e México, e a ação indireta, que é a comunicação que gera o debate público sobre o assunto. Tudo isso funciona através de doações individuais e do projeto "Arte Substantivo Feminino" – em que artistas doam imagens e a venda de impressos gera recursos para manter a organização. Já participaram da ação as artistas Lenora de Barros e Adriana Varejão.
Quer ajuda?
Se você precisa de ajuda, não se preocupe, todos os contatos com a ONG são virtuais e mantidos em sigilo. "Essa mulher chega para nós e logo passa por um grupo de acolhedoras voluntárias para entendermos qual é a sua história: se ela foi vítima de violência sexual, se ela corre riscos ou se ela está com uma gestação extrauterina", afirma Maíra. No geral, há apoio psicológico e, se algo precisa ser judicializado, também há um grupo jurídico de atendimento.
"As meninas do Milhas que agilizaram tudo, foram atrás do melhor hospital e me passaram para a assistente social. Os envolvidos com a minha situação me trataram de uma forma extremamente humana e não me deixaram nenhum dia sozinha. Pegaram minhas mãos e atravessaram esse deserto comigo", relata Michele. "Posso dizer que esse procedimento salvou minha vida. Só tenho a agradecer."
"As meninas do Milhas que agilizaram tudo, foram atrás do melhor hospital e me passaram para a assistente social. Pegaram minhas mãos e atravessaram esse deserto comigo. Posso dizer que esse procedimento salvou minha vida. Só tenho a agradecer"[/quote]
As mulheres que não se encaixam na legislação brasileira recebem as informações para viajar e, às vezes, financiamento parcial ou integral – além do intermédio com a clínica. "Mas o volume de doações que temos não é compatível com o número de mulheres que nos procuram", completa a comunicadora.
Todas elas chegam muito amedrontadas, principalmente pelo risco de vida, já que as opções são recorrer a remédios ou clínicas clandestinas. "Quem procura o aborto é porque está gerando um feto indesejado e isso causa uma grande angústia. Por isso, a maior resposta que temos quando concluímos o processo é de alívio", reflete a ativista.
Desinformação
Michele revela, ainda, que não fazia ideia de como funciona a lei brasileira nesses casos. "Em média, 71% das mulheres que nos procuram não sabem que têm direito. Isso é muito alarmante. Temos campanha sobre diversas questões de saúde, mas não temos uma que fale como acessar o aborto legal para uma mulher vítima de violência sexual" alerta Maíra. "Ela pode procurar uma clínica clandestina sendo que tem respaldo legal. Isso mostra que estamos muito atrasados."
"Hoje há várias barreiras que as mulheres precisam ultrapassar para conseguir acessar o aborto seguro no Brasil: a desinformação, a falta de apoio financeiro, o estigma, a solidão e a locomoção".
Segundo dados do DataSUS, no primeiro semestre de 2020 o número de mulheres atendidas no Brasil pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em razão de abortos malsucedidos foi 79 vezes maior que o de interrupções de gravidez previstas pela constituição. Nesse período, o SUS fez 1024 abortos legais em todo o país. Enquanto isso, foram mais de 80 mil curetagens e aspirações – processos necessários para limpeza do útero após um aborto incompleto. Esses dois procedimentos, inclusive, são mais frequentes quando a interrupção da gravidez é provocada.
"E quando ela não quer gestar, ela se coloca nesse risco. Sabemos de pessoas que introduzem objetos pontiagudos ou tomam chás perigosos. Olha o quão sofredora é essa situação para ela para que chegue nesse ponto", aponta Maíra.
Em solo brasileiro, o aborto é permitido em caso de violência sexual, risco à vida da gestante e e anencefalia fetal. Ainda assim, uma pesquisa realizada por Alexandra Boing, doutora em Saúde Coletiva, e Marina Jacobs, doutoranda na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), mostrou que apenas 3,6% dos municípios do país oferecem o serviço nas suas redes de saúde. Isso quer dizer que mais de 37,5 milhões de mulheres em idade fértil estão sem acesso ao aborto legal no local onde moram.
Desde sua criação até hoje, mais de 6 mil pedidos de ajuda já chegaram ao Milhas Pela Vida das Mulheres, dos quais 850 foram atendidos. "Hoje há várias barreiras que as mulheres precisam ultrapassar para conseguir acessar o aborto seguro no Brasil: a desinformação, a falta de apoio financeiro, o estigma, a solidão e a locomoção", conclui a ativista.