Nada me marcou mais na escola do que a minha relação com meu cabelo. Hoje penso se eu precisava realmente passar por tantas violências e onde estaria se tivesse sido aceita como eu era, questiona a juíza Bárbara Ferrito. Durante meu tempo na escola, nada me marcou mais do que minha relação com meu cabelo. Mesmo indo quase sempre de cabelo preso, como se minha vida dependesse disso, eu sentia que, ainda que domado, meu cabelo era um problema. Nas poucas vezes que tentei algo diferente, fui incisivamente avisada que isso não seria permitido, quer pelo toque das amigas, quer pela zoação dos demais.
Na minha sétima série, lembro-me de ter tentado um rabo de cavalo diferente, fui recebida por um grande amigo que disse: "hoje tá difícil te defender". Lembro-me até hoje do olhar dele e da sensação de deslocamento. Eu não pertencia àquele lugar. E por mais que me esforçasse, de certa forma eu sabia que eu nunca pertenceria.
E vejam, eu sempre gostei dos meus cachos. Nunca quis alisar o cabelo, nem nada disso. Mas de certa forma sabia que seria sempre inapropriada, descabelada, desleixada e sem vaidade. Era como o mundo dizia que eu era. E eu aceitei.
E não é que a escola tenha sido uma experiência traumática. Pelo contrário, sou apaixonada pela escola em que estudei. Pública e de qualidade! Adoro os amigos que lá fiz, ainda tenho contato até hoje com muitos. Mas, quando vejo em retrospectiva, percebo que minhas interações eram muitas vezes mediadas pelo racismo. Eu estava sempre sendo colocada no meu lugar!
Racismo que se repete em escolas até hoje
Essa situação gerou em mim uma sede de me provar muito grande. E uma necessidade de compensar a raça. Eu era negra, mas era engraçada, não dava problema, era inteligente. Foi por essa via que eu consegui experimentar certa sensação de pertencimento. Nunca completa.
Hoje, enquanto eu trabalho a minha autoimagem, tão construída sob os signos desse racismo, eu me impressiono com essa violência. E me surpreendo ainda mais, por saber que jovens negros seguem passando por situações idênticas.
A pergunta que fica é: quantos talentos e aptidões não são perdidos enquanto esses jovens tentam se adequar? Perdem tempo se provando?
O processo de aprendizagem passa necessariamente por uma sensação de conforto e de pertencimento. Sem ela, a criança e o adolescente não criam relação de afeto com o conhecimento e com o processo de apreender!
A questão vai muito além, portanto, de uma exigência de conforto psíquico para crianças e adolescentes negras, embora isso já fosse suficiente para ensejar mudança. Enfrentar o racismo nas escolas é abordar uma questão crucial para o natural desenrolar do processo de aprendizado de boa parte das crianças e adolescentes brasileiros.
Assim, uma pedagogia que considere a criança e o adolescente e suas dificuldades, para além do conteúdo estrito da matéria a ser ensinada torna-se fundamental, na medida em que permite a inserção da temática racial no debate sobre aprendizagem.
A escola precisa ser acolhedora para todas as realidades. Perpetuar um modelo de ensino branco de apagamento da cultura e da própria existência negra implica em seguir produzindo espaços nos quais crianças e adolescentes negros não se sintam acolhidas e parte. E se a educação é fundamental na luta antirracista, esta também é essencial para aquela!
E isso não se faz apenas com boa vontade das professoras, embora essa seja fundamental. A questão deve ser tratada como de política educacional, pensada de forma ampla para produzir impacto real na vida dos jovens negros.
Sonhos para transformar realidades
Pensando aqui em quem sou hoje, uma mulher negra ocupando espaço de poder no Judiciário, duas questões me vêm à mente. A primeira me indaga se eu precisava realmente passar por tantas violências. Não se trata apenas de não ostentar o fenótipo dos padrões de beleza aceitos, mas de se sentir pertencente a uma comunidade. É desse pertencimento que estamos falando e, por isso, a questão é política. Afinal, crianças e adolescentes negros fazem parte da sociedade brasileira?
A segunda questão me faz refletir sobre onde eu estaria se, desde a mais tenra infância, fosse educada para ser em toda minha potencialidade. Sem medos. Sem preocupação em me adequar, em agradar, em ser aceita. Simplesmente poder ser eu. Onde eu estaria agora? O que eu já teria conquistado? Quais sonhos foram ceifados, antes mesmo de nascerem?
É com sonhos que crianças e adolescentes constroem os imaginários necessários para transformar realidades. É na educação, pelo brincar, que as potencialidades se manifestam e dão vazão ao que mais humano existe no indivíduo. A educação não pode, portanto, ser passiva em relação ao que se manifesta como concreto, ao racismo que se coloca como mediador da vida de tantas crianças e adolescentes.
Cada criança que assume seu cabelo, aceita seus dreads, abraça seus cachos ou balança suas tranças é uma criança livre para ser, na maior radicalidade possível da liberdade. Para essa criança, a educação não pode ser outra coisa, se não emancipatória.
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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1.
Este texto, escrito por Bárbara Ferrito, de 40 anos, juíza do Trabalho no Rio de Janeiro, reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.