Assim que completou 16 anos, Sara Wagner York decidiu votar. Hoje com 46, ela conta que “naquele momento já entendia o voto como um processo político importante e sabia que votar era uma possibilidade de mudança estrutural, que poderia de algum modo propiciar políticas públicas para mim e meus pares”, relembra a professora e doutoranda em educação, que se apresenta como uma mulher travesti.
Sara também integra a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (ANTRA). Neste ano, a organização identificou, pelo menos, 76 candidaturas trans pelo Brasil, sendo 67 delas travestis e mulheres trans, 5 homens trans, e 4 candidates com identidades não-binárias.
Isso representa uma evolução de 44% em relação a 2018. Para a professora, o crescimento do número significa não só a possibilidade de ter mais políticas públicas voltadas para a população trans e travesti, mas também a naturalização dessas pessoas dentro de diferentes espaços. “Essas candidaturas são representativas para outras pessoas e circuitos eleitorais, [criando] uma leitura de normatividade", diz.
A primeira
É bem provável que, este ano, o Brasil ganhe sua primeira representante trans ou travesti na assembleia federal. Políticas de votação expressiva nas últimas eleições municipais, como Érika Hilton em São Paulo ou Duda Salabert em Minas Gerais, são candidatas. Nomes de longa atuação na comunidade, como a co-deputada Robeyoncé Lima em Pernambuco ou a ativista Symmy Larrat em São Paulo, também.
A repercussão da chegada de uma representante trans ou travesti na assembleia federal pode ser estendida para diversos grupos da sociedade. "[Uma candidatura trans] pode ter um impacto propositivo, com ações diretas para a comunidade, mas também pode ser um espaço de incômodo e ajuste. A gente sabe que quando uma pessoa trans ocupa um espaço, ela obriga a atualização dos sujeitos que estão naquele espaço", acredita Sara.
A pernambucana Erica Thawany, de 32 anos, acredita que o cenário tem melhorado a cada eleição, embora esteja longe do ideal. A costureira tem sua própria confecção de roupas em Santa Cruz do Capibaribe (PE), cidade onde chegou em 2010 à procura de um trabalho. A região, junto de Toritama e Caruaru, é um dos maiores polos têxteis do Brasil. A realidade do trabalho, contudo, ainda é muito precária para grande parte das mulheres da região, que fazem longas jornadas com baixos salários.
Esse contexto foi a motivação para Erica candidatar-se como vereadora nas eleições municipais de 2020. Seu objetivo era defender os direitos das outras mulheres que ocupam as máquinas de costura ao seu lado, além da agenda LGBTQIA+. Foi esse processo de campanha que a fez enxergar a parte conservadora da sua cidade, com pouco mais de 100 mil habitantes.
“Nas ruas, quando estava pedindo voto, enxerguei uma Santa Cruz muito conservadora. E eu, como mulher trans, ao me candidatar numa cidade como essa, com pouco desenvolvimento [de políticas] para população LGBTQIA+, com pouca visibilidade para essas pessoas, tive muita dificuldade”, conta ela, que foi a primeira pessoa trans do município a fazer a redesignação sexual e é ativista do coletivo Cores de Capibaribe.
Panorama em números
A pesquisa realizada pelo ANTRA aponta, ainda, outros dados sobre as candidaturas trans, travestis e não-binárias.
A maior parte delas, 26, concentra-se no sudeste. Depois, aparece o nordeste, com 21 candidaturas, seguida da região centro-oeste, com 14. Na sequência, o norte aparece com dez e o sul com seis candidaturas.
Nos postos legislativos, foram mapeadas 1 candidatura distrital (DF), 39 para as assembleias estaduais e 36 para a câmara federal.
Quanto ao perfil étnico-racial, a organização identificou 2 candidaturas de pessoas autodeclaradas indígenas, 25 de pessoas brancas e 49 negras (pretas e pardas).
A ANTRA aponta ainda que, das 294 travestis, mulheres transexuais e homens trans que concorreram às eleições municipais em 2020, 30 foram eleitas. O número representou um crescimento de 275%, quando comparado às eleições municipais de 2016.
Passado, presente e futuro
Kátia Tapety foi a primeira pessoa trans eleita no Brasil, em 1992. Ela foi vereadora no município de Colônia do Piauí e reeleita em 1996 e 2000. Também vice-prefeita em 2004. Tema de um documentário de 2012 dirigido por Karla Holanda, Kátia deu nome a uma Escola de Formação Política recém-inaugurada no Rio.
A ex-política fez parte do grupo de 27 pessoas que ocuparam o Congresso Nacional para reivindicar pelas agendas trans e travesti. “Travesti e Respeito” foi o mote que reuniu mulheres como ela e Keila Simpson, Fernanda Benvenutty e Jovana Baby. A data da ocupação, 29 de janeiro de 2004, ficou marcada como o Dia Nacional da Visibilidade Trans no Brasil.
Para Sara, o legado de Kátia é um marco na luta trans e travesti. “Se mudou muita coisa? Acredito que sim. Desde uma que foi eleita no sertão nordestino até, hoje, termos as maiores votações enquanto vereanças de alta expressão", diz ela ao citar Erika Hilton, primeira mulher trans a ocupar um cargo da vereança paulistana, que em 2020 foi eleita a vereadora mais votada do país, com mais de 50 mil votos. "Podemos dizer que, dessa vez [2022], a gente vai conseguir ter algumas delas no sistema federal, na câmara legislativa".
A visão é semelhante à de Erica. Como um caminho de políticas públicas para a comunidade trans e travesti, ela cita três pilares principais: moradia, saúde e desenvolvimento social.
Sara complementa ao dizer que o objetivo é haver mais iniciativas no campo legislativo. "As conquistas dos últimos anos se deram através do STF ou de alguma estruturação do sistema jurídico nacional. Não existe nenhuma lei no Brasil que proteja o corpo trans e travesti", afirma a professora, que neste ano também tornou-se âncora de um programa no Brasil 247.
"A gente está falando do uso de nome social em várias idades, da utilização de banheiro em espaços sociais, da privação de pessoas trans em espaços religiosos, a culpabilidade ou a criminalização de vivências trans… tudo que reforçado a exclusão e que, muito provavelmente, candidaturas trans poderiam mudar, pra todas nós", finaliza.