Marcelina do Nascimento ou Marcelina Paraatleta, como ficou conhecida e gosta de ser chamada, tem 41 anos e se tornou uma referência no parajiu-jitsu brasileiro ao colecionar títulos importantes: são dela o tricampeonato brasileiro e o ouro no Sul-Americano organizado pela Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu Esportivo.
A atleta, que vive em Juiz de Fora, Minas Gerais, tem paralisia cerebral congênita com sequelas psico-neuro-motoras de membros inferiores. "Até os seis anos eu não andava e não falava. Fiz seis cirurgias e dez anos de fisioterapia, além de um trabalho intenso de terapia cognitiva com a minha mãe na época", explica.
A relação com o esporte veio já adulta, aos 33 anos, quatro meses após a morte da mãe, figura central na sua história, e de perder os movimentos das pernas. "Levantei para ir ao banheiro e não consegui voltar, só consegui ligar para minha pastora, que levantou um clamor na igreja e, assim, eu consegui voltar para a cama", relembra Marcelina, falando também sobre sua outra paixão: a igreja.
"Depois da igreja, o jiu-jitsu é o único lugar que eu consigo ter uma felicidade plena porque ali estou no meio dos meus iguais", reflete a paratleta.
Volta dos movimentos
Sem motivos aparentes para a perda dos movimentos das pernas, veio a busca por um diagnóstico que levou três anos e muitas idas para o Rio de Janeiro, para fazer exames complementares.
"Tenho lesões secundárias devido às alterações da minha biomecânica. Como nasci com o joelho virado para dentro e os pés virados para trás, fiz a cirurgia para corrigir. Só que, como parei de fazer a fisioterapia aos 13 anos, a fisio regrediu, o que culminou na perda dos movimentos", explica ela que, na época, ouviu dos médicos que a volta dos movimentos era impossível.
"Entrei no ônibus e tive uma discussão com Deus em que eu falei: 'não aceito ter que regredir para a condição do meu nascimento, você me viu avançar e não vou regredir'". A resposta divina chegou de forma inusitada: por meio da apresentadora global Fátima Bernardes.
"Liguei a televisão no 'Encontro' [então apresentado por Fátima] e estava passando uma matéria sobre 'Jiu-jitsu na Estrada', mostrando as pessoas no parajiu-jitsu. Foi então que descobri a modalidade".
Marcelina começou a busca por um equipe onde pudesse treinar. Por preconceito e pela dificuldade de mobilidade, muitos profissionais não treinam pessoas com deficiência. Ela acabou encontrando o técnico Flávio Naval e a equipe Equipe GFTEAM. Foi então que passou a se dedicar ao esporte – e conquistou de volta os movimentos das pernas.
Trajetória e apoio incondicional
Ao longo da entrevista, a mãe de Marcelina, Ivone, surge diversas vezes em suas lembranças e discursos. Empregada doméstica e babá, ela estudou só até a quarta série, atual terceiro ano do ensino fundamental, o que não a impediu de fazer todo o possível pela melhora de qualidade de vida da filha.
"Na época, ela me levava ao médico e à fisioterapeuta e fotografava e anotava as informações para repetir os exercícios em casa, adaptando com os materiais que a gente tinha, garrafa e tampinha de refrigerante ou pedal de máquina de costura", conta.
Na época, meados dos anos 1980, tudo era muito diferente, em especial para pessoas com deficiência. "As escolas não aceitavam crianças com deficiência. Algumas poucas até tinham salas específicas, mas sem muito cuidado, então minha mãe dava um jeito. Sempre lembro que o pão vinha enrolado num papel e amarrado com um barbante. Ela então fazia um varal com o barbante e o papel usava como cartaz das letras".
Marcelina lembra ainda que Ivone fazia questão de explicar as letras relacionadas com coisas materiais e que estavam presentes na casa. "O A não era de amor, era de abacaxi, e ela me mostrava o abacaxi. A partir dali, aprendi a falar e depois a escrever", explica Marcelina, relatando um método que encontra ressonâncias no defendido pelo aclamado educador Paulo Freire para alfabetização.
"Essa dedicação fez com que eu me tornasse uma adulta com total independência e autonomia para fazer minhas atividades cotidianas".
Dedicação ao esporte
Formada em Engenharia de Telecomunicações e atuando na área por 20 anos, Marcelina se dedica exclusivamente ao esporte há sete, sendo que no último seu objetivo é conquistar o Bolsa Atleta, programa do governo federal. "Há 20 dias fechei com o Clube Bom Pastor de Juiz de Fora e agora tenho uma equipe multidisciplinar que me acompanha na fisioterapia, nutrição, suplementação, musculação e na terapia", celebra.
"O jiu-jitsu é meu coração batendo fora do meu peito. O que era motivo de vergonha hoje é motivo de honra, por conta do esporte", afirma ela ao falar sobre a modalidade. É com esse espírito que ela pretende incentivar outras pessoas com deficiência no esporte.
"Quero iniciar um projeto para incluir e valorizar a pessoa com deficiência nos esportes de luta, além, claro, de seguir competindo". A meta é fechar o calendário de competições de 2023 e seguir para o Mundial em Riad, na Arábia Saudita, no dia 23 de outubro. Para isso, ela conta com a ajuda da sociedade civil: passagem e hospedagem ficam por conta da federação, no entanto, os recursos para se manter no campeonato é angariado em campanhas que faz por meio das suas redes sociais.
"Não tenho patrocinador fixo, então para todas as competições, mais ou menos a cada três meses, faço uma campanha nas redes sociais pedindo a colaboração das pessoas. Mas sempre gosto de lembrar nas entrevistas que empresas que patrocinam pessoas com deficiência no esporte têm dedução fiscal dos impostos e podem me procurar via redes sociais", ressalta Marcelina.