O escritório da Organização das Nações Unidas (ONU) para Direitos Humanos na América do Sul manifestou, nesta segunda-feira (29), preocupação com projetos do Congresso Nacional que podem afetar as causas indígenas e cobrou as autoridades brasileiras sobre “medidas urgentes em prol destas populações, conforme as normas internacionais de direitos humanos”.
Segundo a ONU, as iniciativas legislativas do Congresso Nacional “arriscam enfraquecer a proteção dos povos indígenas no Brasil”.
A maior preocupação da ONU é com a aprovação do requerimento de urgência para votação do Projeto de Lei (PL) 490, que pretende estabelecer um marco temporal para demarcação de terras indígenas. Pela proposta, que deve ser colocada em votação nesta terça-feira (30), somente serão demarcadas as terras indígenas que eram tradicionalmente ocupadas por esses povos na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.
A urgência sobre a votação do PL 490 foi aprovada no dia 24 deste mês, o que acelerou a tramitação do projeto de lei. Se aprovado pela Câmara, o projeto segue para o Senado.
“Aprovar o projeto conhecido como marco temporal seria um grave retrocesso para os direitos dos povos indígenas no Brasil, contrário às normas internacionais de direitos humanos”, disse o chefe da ONU Direitos Humanos na América do Sul, Jan Jarab. “A posse das terras existentes em 1988, após o expansionismo da ditadura militar, não representa a relação tradicional forjada durante séculos pelos povos com seu entorno, ignorando arbitrariamente seus direitos territoriais e o valor ancestral das terras para seus modos de viver”, acrescentou Jarab, em nota.
Em novembro de 2021, a ONU Direitos Humanos já havia alertado ao Congresso de que tal projeto de lei é incompatível com as normas internacionais de direitos humanos.
Outra preocupação do Escritório de Direitos Humanos da ONU é com a retirada de atribuições dos ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente e Mudança do Clima.
“O Parlamento brasileiro tem uma responsabilidade fundamental na promoção e proteção dos direitos humanos. Portanto, deve avaliar qualquer medida relacionada aos povos indígenas e ao ambiente com o intuito de fortalecer as capacidades do país para proteger esses direitos, e para combater os impactos da mudança climática e do desmatamento”, disse Jan Jarab.
Human Rights
A organização internacional Human Rights Watch também manifestou preocupação com a votação do marco temporal. Em nota, a organização diz que o Congresso brasileiro deveria rejeitar um projeto de lei que adota um marco temporal arbitrário para o reconhecimento de terras indígenas.
“O direito de povos indígenas a seus territórios não começa, nem termina em uma data arbitrária”, disse a diretora da Human Rights Watch no Brasil. Maria Laura Canineu. “Aprovar esse projeto de lei seria um retrocesso inconcebível, violaria os direitos humanos e sinalizaria que o Brasil não está honrando seu compromisso de defender aqueles que comprovadamente melhor protegem nossas florestas”, afirmou.
Para a organização, a aprovação da urgência para a votação foi uma manobra dos deputados para tentar “influenciar uma decisão bastante aguardada do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal”. Isso porque o STF marcou para 7 de junho a retomada do julgamento do marco temporal.
A tese sobre o marco temporal surgiu em 2009, em parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, na qual o critério foi usado.
Atualmente, o STF discute o tema em razão da disputa sobre a Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ. Parte da área de 80 mil metros quadrados (m²), ocupada pelos indígenas Xokleng, é questionada pelo governo de Santa Catarina. O estado argumenta que na data de promulgação da Constituição não havia ocupação na área. Por outro lado, indígenas argumentam que, naquela ocasião, haviam sido expulsos do local.
No dia 7 de junho, a Corte analisará se há validade do marco temporal em todo o país, o que alcançará mais de 80 casos semelhantes e mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas pendentes.
Para a Human Rights Watch, o governo atual, apesar de ter se comprometido a proteger os direitos indígenas e o meio ambiente, “tem enviado sinais contraditórios em relação ao marco temporal. Enquanto a ministra dos Povos Indígenas e a presidente da Funai o rejeitam veementemente, o ministro da Agricultura disse ser favorável a ele durante uma entrevista, e o advogado-geral da União ainda não revogou o parecer de 2017”, diz em nota a organização.
“Os direitos dos povos indígenas estão em risco”, disse Maria Laura. “O presidente Lula e seus ministros deveriam se opor veemente e inequivocamente a qualquer tentativa arbitrária de impedir as demarcações de terras indígenas. O advogado-geral da União também deveria fazer sua parte revogando imediatamente o parecer de 2017 e defendendo os direitos dos povos indígenas.”
A organização destaca que a incerteza sobre a demarcação torna os territórios particularmente vulneráveis à invasão por grileiros e garimpeiros, gerando conflitos possessórios e violência contra os povos indígenas. Segundo a organização, a escolha de um marco temporal arbitrário viola os padrões internacionais sobre o tema.
Entidades religiosas
Já a Iniciativa Inter-religiosa pelas Florestas Tropicais (IRI Brasil), que está presente em países como Brasil, Colômbia, Peru, República do Congo e Indonésia, informou que enviou neste domingo (28) carta ao Congresso Nacional em que defende os direitos dos povos indígenas e se manifesta contra a aprovação do projeto de lei.
No documento, enviado a todos os deputados federais, as entidades religiosas ressaltam que, "em lugar de ‘aperfeiçoar a legislação indigenista’, como apregoam seus defensores, os referidos projetos de lei ferem de morte os povos indígenas do país".
A carta foi assinada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil; pela Aliança Cristã Evangélica; pela Confederação Israelita do Brasil; pela Religiões pela Paz Brasil; pela Rede Eclesial Pan-Amazônica; pelo Movimento Laudato Si’; pela Rede Cristã de Advocacia Popular; pelo Movimento Evangélico Contra o Marco Temporal; pela Iniciativa das Religiões Unidas; e pela Iniciativa Inter-Religiosa Pelas Florestas Tropicais.
Edição: Nádia Franco