Tenho trinta e alguns anos, em um referencial cisgênero ainda sou jovem. Contudo, circulando em meios e grupos trans, ter trinta e poucos e tendo iniciado meus movimentos de transição há mais de uma década, já são elementos que fazem me sentir 'tia'. E foi bonito ver o quanto, nesta última década, algumas coisas mudaram para pessoas trans no Brasil. Mas há um ponto muito importante a ser lembrado: se há avanços a comemorar, eles não são frutos aleatórios de divina graça ou de natural evolução da humanidade. Avanços que colhemos sempre partem de construções e disputas das pessoas que vieram antes de nós. Nós, pessoas trans, temos também têm uma longa história a recuperar e, num território que tem o esquecimento como estratégia política, lembrar de nossas histórias enquanto comunidade é uma poderosa ferramenta de fortalecimento tanto de cada ume de nós quanto das nossas lutas.
Jovanna Baby, importante referência nos movimentos trans no Brasil, publica um livro chamado "Bajubá Odara" e, nele, ela modifica uma dinâmica de compor nossas histórias apenas pela oralidade e registra em texto escrito a história do nascimento do movimento de travestis no Brasil. Algumas coisas são importantes de destacar, entre elas o fato da primeira organização ter se dado no contexto em que elas reivindicavam o direito de não sofrer abordagens levianas e violentas por parte de agentes da segurança pública aponta para uma auto-organização que começa a partir de reinvidicações nascidas no concreto das ruas e das pistas. Jovanna, que compôs essa primeira articulação, hoje segue atuante e inclusive preside o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros (FONATRANS).
Junto com Jovanna, uma outra importante memória viva de avanços para as vidas trans no Brasil é dona Kátia Tapety, que, em 1992, alcançou o feito de ser a primeira pessoa trans eleita para um cargo parlamentar no Brasil. Dona Kátia foi vereadora em 1992, 1996 e 2000, sempre com uma expressiva votação em seu município (Colônia do Piauí). Foi presidente da câmara municipal entre 2001 e 2002 e, de 2004 a 2008, foi vice-prefeita do município. Se a memória viva de Jovanna nos alerta para a importância de construir memória sobre nossas articulações, a memória viva de dona Kátia nos lembra que, mesmo nos campos institucionais, a história é sempre mais complexa do que nos tenta contar a norma cisgênera.
As duas são exemplos dentro de uma infinidade de outras histórias de vida que nos ajudam a complexificar o modo como contamos a nós mesmas sobre nossas comunidades. Lembro aqui da minha querida Sofia Favero, que sempre diz que pessoas trans seguem reivindicando o direito à complexidade. Não chegamos agora, não estamos começando do zero e nem precisamos reinventar a roda a cada tempo. Memória coletiva é um instrumento que nos ajuda, pessoas trans, a produzir sentidos e direcionamentos para nossas perspectivas.
Um desafio nosso é compor memória enquanto caminhamos pelos caminhos que nos forem devidos. Mas fato é que a possibilidade de articulação com nosses pares, definir pautas em comum e pensar estratégias coletivas é fundamento de fortalecimento em nós e mudança no mundo - isso já nos lembra Jovanna a partir de suas memórias das primeiras articulações que produziram o movimento social trans no Brasil.
Às nossas mais velhas, desejo saúde e possibilidade de registrar por si mesma, sem mediações da cisgeneridade, suas histórias de vida.
Às nossas mais novas, desejo que nunca nos falte a busca pelas histórias que moldaram o mundo que em nossa geração nos recebe.