Para desnaturalizar a transfobia é preciso tanto olhar para as instituições quanto para o dia a dia

Para que alguém se autorize a nos matar, antes as pessoas vão se autorizando a nos humilhar em público e a nos desumanizar

15 ago 2023 - 05h00
(atualizado em 26/10/2023 às 09h26)
Desnaturalizar a transfobia é tarefa das duas frentes com exemplos públicos de alcance nacional e também com atitudes do dia a dia de todos nós
Desnaturalizar a transfobia é tarefa das duas frentes com exemplos públicos de alcance nacional e também com atitudes do dia a dia de todos nós
Foto: iStock/FG Trade

Um ponto muito importante de nossas lutas trans é pensar como podemos produzir mudanças culturais em um Brasil profundamente atravessado pela transfobia. Diferentes dimensões de violência acabam, todo dia, atravessando as vidas das pessoas trans no Brasil ao mesmo tempo em que tentamos ir, dos modos possíveis, abrindo um pouco os espaços para nossas vidas e fazendo nossa existência ser naturalizada entre as diferentes pessoas. 

Enquanto é importante reconhecer os avanços que temos tido, também é importante perceber os pontos difíceis, aqueles espaços sociais onde nossa existência não só não é aceita como ainda causa espanto, riso e ódio. Mas nada disso está dado ou é natural. Tudo isso é uma disputa constante de como a sociedade brasileira vai enxergar pessoas trans.

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A vida de todo dia é também um espelho das grandes discussões nacionais. Assim, pensar como desnaturalizar a transfobia é tarefa das duas frentes. Duas cenas me chegam a cabeça nesse momento. Na manhã de domingo, fui ao supermercado próximo da minha casa e, na fila do balcão de frios, uma família chega mais atrás na fila. Um senhor cercado de outras pessoas adultas se sente autorizado a ser engraçado. Quando estou saindo ouço ao longe, pelas minhas costas: "Isso é homem ou mulher? Sei lá que porra é isso", o idoso fala. Tomada de susto com a violência gratuita, meu impulso foi o de sair dali o mais rápido possível, enquanto lidava com um sentimento de medo que ia se transformando em raiva. 

Uma outra cena também me chega na memória. Por esses dias, acompanhei a decisão da Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados sobre a representação aberta contra o deputado Nikolas Ferreira, que foi acusado de transfobia ao usar uma peruca para debochar do feminismo no Dia Internacional das Mulheres. Me chamou muita atenção as falas argumentando a decisão, que depois foi endossada pela maioria dos presentes. O que estava sendo disputado ali era se o fato do referido parlamentar ser recorrentemente transfóbico era motivo ou não de abertura de processo ético. E, depois de uma disputa de argumentos, a representação coletiva foi arquivada quando o motivo foi entendido como não sendo forte o suficiente para pedir punição.

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As duas cenas me chamam atenção porque elas partem de um mesmo princípio e uma alimenta a outra. Ambas parecem demonstrar que é natural humilhar pessoas trans. Mais ainda: que é natural fazer chacota, menosprezar e rir em público de pessoas trans. Essa camada é o começo de um ciclo muito perigoso que autoriza atos de violência cada vez maiores, que têm como ápice nosso extermínio físico. Para que alguém se autorize a nos matar, antes as pessoas vão se autorizando a nos humilhar em público e a nos desumanizar, construindo um entendimento de que somos monstruosas, perigosas, farsas ou doentes. 

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Mas como mudamos esse cenário? 

Renata Carvalho, há alguns uns anos, ao combater o transfake e afirmar o quanto é nocivo quando pessoas cis nos interpretam de forma estereotipada, já dizia que o melhor método de desnaturalizar a transfobia é fazendo com que possamos conviver nos diferentes espaços. Com o convívio, as pessoas veriam que somos humanas, assim como elas. Que somos complexas, controversas, diversas. E, com isso, nos humilhar gratuitamente em público parece ir ficando sem argumentos - ou assim esperamos. 

Mas fico pensando naquele senhor do supermercado e em como ele se incomodou com minha presença naquela manhã de domingo. Fiquei pensando em como, enquanto ele se incomoda, nossa melhor vingança é seguir vivas, acessando espaços e, quem sabe, até felizes e sendo reconhecidas em nossas identidades e potências. Para o ranço de todos eles, estamos avançando e nosso trabalho é para que a transfobia pareça cada vez mais absurda e, com isso, possamos ter proteções institucionais que desnaturalizem essa violência e possam punir devidamente parlamentares e pessoas públicas que autorizem violências transfóbicas desde seus lugares. Ainda estamos longe desse dia, mas, apesar de tudo, estamos caminhando.

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Fonte: Redação Nós
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