Para começar do começo: o que são pessoas não binárias? Esta é uma "identidade guarda-chuva", ou seja, que engloba diversas outras formas de identificação tais como agênero, neutro, bigênero, gênero fluido e por aí vai. São muitas formas de se nomear, mas nem por isso a nomenclatura "pessoas não-binárias" pretende excluir qualquer categoria dentro da transgeneridade. Esta foi uma forma que os movimentos sociais, políticos e acadêmicos encontraram de agrupar diversas pessoas que muitas vezes possuem demandas em comum.
A exemplo disso a filósofa Judith Butler discute a ideia de identidade como algo que não nasce conosco, é algo que construímos vivendo em sociedade. Identidade é uma forma de aliança, um grupo que se reúne, encontrando diversas semelhanças em suas vidas. Desta forma, a identidade é algo estratégico para podermos demandar nossos "direitos universais". Acesso à saúde, educação, segurança e outros deveriam ser direitos de todas as pessoas, mas que se não forem pensados com as "especificidades" de cada comunidade, não conseguirão ser efetivados na prática.
Mas, então, se gênero e raça não são identidades que nascemos com elas, como isso ocorre? A professora doutora Megg Rayara Oliveira argumenta que a diferenciação entre apenas dois sexos naturais binários é uma construção datada principalmente dos séculos XVIII e XIX, nos quais a colonização dos corpos e mentes foi uma estratégia fundamental para instituir um regime escravista e capitalista. Existem diversos povos que antes da colonização tinham e ainda têm outras formas de se colocar no mundo, que a própria ideia de sexo/gênero - algo também "inventado" (pense a cultura branca e cis como também uma ficção de si) - não faz sentido para a organização dessas pessoas.
Agora, voltando para os direitos humanos: pessoas não-binárias não têm acesso ao serviço público pois é uma história de luta contra o racismo e a colonização atual. A branquitude cria e recria o sistema de gênero binário e seus direitos apenas para homens e mulheres cis, brancos. Por isso a luta pelos direitos é interseccional, como pensa Patrícia Collins.
O simples fato de que para podermos nos aposentar com dignidade é preciso se declarar como homem ou mulher já é barrar o direito para pessoas não-binárias ou que têm suas existências fora desse padrão. A aposentadoria "antecipada" para as mulheres foi uma política conquistada pensando na sua dupla ou tripla jornada de trabalho que as mesmas desempenham com o trabalho doméstico não valorizado. Porém, como fica o direito das pessoas não-binárias e pessoas trans no geral? Não estão essas pessoas também realizando amplas jornadas de trabalho pela sobrevivência? Quem nasceu com útero e foi criade para fazer trabalho doméstico não continua essa educação?
Por isso, é necessário pensar políticas que não excluam, tanto para pessoas transmasculinas, como para intersexo e não-bináries, que não aceitem a colonização. Se as políticas atuais não estão funcionando para todes - e não conseguirão - é preciso ouvir as vozes das pessoas que historicamente são ignoradas na tomada de decisão. Portanto, para combater a desigualdade é necessário combater o racismo, a transfobia, a colonização.
Eai? Já tinha pensado sobre gênero e branquitude?