A vitória do Palmeiras e a derrota da sociedade: rir de tudo é desespero

Precisamos investigar nosso apego ao senso comum que transforma diferenças e especificidades humanas em piadas

5 abr 2022 - 17h20
(atualizado às 17h23)
Do mesmo modo que a celeuma entre Will Smith e Chris Rock descortinou a hipocrisia do antirracismo, esse caso do Danilo também o fez
Do mesmo modo que a celeuma entre Will Smith e Chris Rock descortinou a hipocrisia do antirracismo, esse caso do Danilo também o fez
Foto: Reprodução/Instagram

O Palmeiras venceu o São Paulo, no último domingo, na final do Campeonato Paulista 2022. Que maravilha! Mas, fora do campo, estamos todos perdendo grandes oportunidades de sermos pessoas melhores. Não existe mundo melhor com pessoas que não melhoram.

Convenhamos, quando um atleta negro, como Danilo, com uma incontestável trajetória de vitórias pessoais típicas de quem nasce em um país racista, acha “OK” desvirtuar as dádivas do humor para depreciar seu adversário, e recebe como resposta uma avalanche de xingamentos racistas daqueles que se dizem pró-LGBTQIA+, estamos todos perdendo muito mais do que um campeonato esportivo. Estamos perdendo o jogo contra nossos demônios sociais.

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O Oscar 2022, transmitido aos quatro cantos do mundo no último 28 de março, trouxe de volta uma discussão (ainda!) aberta na sociedade: os limites do humor e a função da piada. Em tom de brincadeira pode tudo? Uma “simples” piada suscitou uma reação negativa que provocou uma avalanche de acusações e perseguições que anuncia nas entrelinhas o quanto o racismo é uma trama sofisticada.

“É só uma piada” não é e nunca foi um argumento sustentável. Uma piada pode ser o começo ou a permissão para execuções humanas sumárias. É preciso entender a extensão disso e principalmente, a insistência e o apego da sociedade a esse trunfo usado para confessar, covardemente, suas debilidades morais e éticas, que nada tem a ver com a intenção nobre e artística do humor.

Homofobia e racismo

Na final do Campeonato Paulista, a ação do jogador Danilo, homem negro (importante ressaltar esse detalhe), provocou uma avalanche de acusações e perseguições, só que dessa vez o racismo não está nas entrelinhas, está sob a luz das paixões que o futebol desperta. As redes do jogador foram inundadas de xingamentos racistas.

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Do mesmo modo que a celeuma entre Will Smith e Chris Rock descortinou a hipocrisia do antirracismo, esse caso do Danilo também o fez. Afinal, se a violência não se justifica como reação a uma piada, por que a piada sem limites não é entendida como violência? São dois casos em que o cenário muda, mas o contexto social é o mesmo.

Ambos revelam a nossa imaturidade expressa pelo negacionismo que não quer entender que a violência física é o fim da linha de um caminho pavimentado por violências cotidianas  naturalizadas. 

Piada que mata

Rir de uma alopecia feminina e negra é tão violento quanto reforçar estereótipos homofóbicos e machistas que depreciam pessoas por gênero e/ou vivência sexual. E ambos culminam em reações sociais sistemáticas e históricas que levam a morte real. Se você dúvida, dê uma olhadinha nas estatísticas da violência contra a mulher, do genocídio da população negra ou da morte de pessoas LGBTQIA+.

Quando um atleta negro, latino-americano, de origem pobre, não entende que sua posição social deveria lhe conferir no mínimo bom senso para não reverberar o mesmo padrão de “brincadeiras” opressoras que o vitimou a vida inteira, e recebe uma avalanche de xingamentos racistas vindo de pessoas que se dizem anti-homofóbicas, há algo de muito errado, sim. Falta mais do que consciência racial, falta consciência humana.

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E precisamos investigar nosso apego ao senso comum social e seus conteúdos ultrapassados que transformam as diferenças e especificidades humanas em motivo de piada, além da nossa leviandade em tentar convencer ao mundo de que o humor não tem limites, entendendo isso como sinal triste da nossa degradação humana, que amortece nossa veia empática e nos faz cutucar as feridas alheias, indiscriminadamente, em risonhas rodas de conversas públicas.

Piada ou ódio reprimido?

Uma piada nem sempre é só uma piada. Ela pode ser desde o aceno que permite violências diversas até uma confissão de descaso ou de ódio reprimido. Freud, o pai da psicanálise, em sua obra “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, publicada em 1905, nos trouxe a abordagem psicanalítica sobre os limites do humor ou o real uso de algumas piadas. Chiste é uma palavra que deriva do alemão Witz, e que significa “gracejo”. Freud define o chiste (o gracejo ou o tal do “tom de brincadeira”) como uma espécie de cano por onde deixamos escoar os conteúdos presentes no nosso inconsciente.

O que existe no inconsciente de alguém que teve sua subjetividade marcada pelos preconceitos, racismos, machismos etc., que fazem parte da construção do imaginário coletivo social? Preconceitos, racismos, machismos etc.

Como a moral vigente condena, de maneira hipócrita (uma vez que reprime, mas não se dispõe a resolver), as manifestações livres dessas deformidades sociais, o jeito é extravasar, conscientemente ou não, pelo chiste (a piada, o gracejo ou o tom de brincadeira). Curiosamente, o brincar caracteriza o comportamento infantil. Infantil vem de infante, que seria aquele que não sabe ou não pode se responsabilizar integralmente pelo que fala, condição social da criança.

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Mas a criança, em nossa sociedade, não pode falar tudo, pois é reprimida com o argumento de autoridade do adulto, que usa a moralidade vigente como regulador do que é permitido ou não dizer. Mas um adulto que não entende a si mesmo, o mundo em que vive e seus contexto, não seria um infante que usa a piada ou o chiste como amparo ou escudo da sua ignorância?

Já dizia a canção ‘Amor para Recomeçar’, da banda Barão Vermelho, em um trecho baseado no poema de Vitor Hugo: “(…) Que você descubra que rir é bom. Mas rir de tudo é desespero”.

Uma piada pode ser o começo ou a permissão para execuções humanas sumárias
Foto: ePipoca
Fonte: Joice Berth
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