A sub-representação das camadas da população que foram vulnerabilizadas pelas desigualdades sociais continua sendo o maior trunfo das opressões estruturais. Sabemos que representatividade importa, mas, cada vez mais se faz necessário estabelecer os termos dessa representatividade e, principalmente, quem realmente está apto a representar quem e porque. É visível que as artimanhas do sistema de opressão para fragilizar esse instrumental de equiparação que tem por intenção principal nos conduzir a emancipação acertaram em cheio e se não voltamos à estaca zero, estamos muito próximo disso.
O debate racial, de classe e de gênero, aos trancos e barrancos, obteve avanços que não serão mais recuados, sobretudo no que se refere à conscientização e, isso está devidamente pontuado no resultado dessas eleições (mesmo que estejamos rumo ao segundo turno).
Mas se por um lado tivemos o alívio da derrota de figuras irreversivelmente corrompidas pelos sistemas de opressão e dominação, como Sérgio Camargo, Fernando Holiday e Joice Hasselmann, por exemplo, e tendo eleito nomes bastante significativos como Érika Hilton, Guilherme Boulos, Renato Freitas, Carol Dartora, ainda assim, no que se refere a tão importante representatividade não avançou o suficiente e na melhor das hipóteses, mostrou que os discursos que exaltam sua importância perderam força.
A representatividade ainda importa, mas por não se situar corretamente na perspectiva da classe social para gerar uma efetiva mudança coletiva nas camadas historicamente excluídas, para além da mídia, já é vista com desconfiança. Há tempos a representatividade está apenas no âmbito da visualidade midiática, o que não é dispensável, mas é incompleta, já que está descolada da realidade do cotidiano das pessoas comuns e sendo pautada apenas por ganhos individuais isolados.
A negritude pobre das zonas periféricas cujo dia começa às quatro ou cinco da manhã, atravessando a cidade de um ponto a outro, para chegar ao trabalho, até tem uma resposta emocional e algum alimento para seu orgulho negro quando a mídia, (inexplicavelmente orgulhosa, já que em 2022 esse tipo de notícia é a vergonhosa reafirmação do privilégio branco) noticia o primeiro negro ou primeira negra a realizar algum grande feito ou ocupar algum lugar de destaque, majoritariamente branco, em qualquer área social.
Mas na sequência a emoção arrefece e a negritude diante da rotineira escassez e das sucessivas humilhações racistas do cotidiano se pergunta: o que isso muda na minha vida?
Intuitivamente a sociedade, letrada ou não, sabe que o único caminho para a mudança coletiva ainda é a política.
E é aqui que temos o “fiel da balança” do debate racial atual nos apontando um sinal amarelo que vem sendo negligenciado há tempos: a afroconveniência ou a transitoriedade perniciosa da autodeclaração racial que se fortalece quando o colorismo entra em cena.
Ok, os grandiosos e imensuráveis expoentes históricos da luta antirracismo contemporânea, do qual a filósofa Sueli Carneiro é um dos nomes mais proeminentes, já explicaram sobre os arranjos feitos no passado para formar a categoria negro (pretos + pardos) da qual o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia Estatística - se vale nas suas averiguações indispensáveis para pautar as políticas públicas. Mas os tempos são outros e a categoria pardo não é mais a mesma.
Se em um passado não tão distante as relações amorosas e matrimoniais entre raças diferentes não eram tão comuns ou ocorriam com menor frequência, há pelo menos três décadas isso mudou consideravelmente. Então temos muito mais pessoas que são frutos da miscigenação, que podem ser identificados como pardos, que não necessariamente se identificam, se reconhecem e/ou são reconhecidas como negras na sociedade. Quando discutimos racismo é a partir do entendimento de que raça é uma informação social, assim como gênero, e não biológica, já que somos todos da raça única, a humana.
É fato que o tratamento discriminatório, manifestação mais notória do racismo no Brasil, é dado pela visualidade, quer dizer, onde se vê negritude é que ocorrerá a discriminação e, quanto mais essa negritude for visível na imagem e estética, maior e mais escancarada será a violência racista. Para os miscigenados, frutos das relações inter-raciais, a realidade do racismo sempre foi vivenciada, mas de modo diferente e mais velado. Isso é a síntese do colorismo, termo cunhado pela escritora afro-americana Alice Walker em seu livro, “In Search of our Mothers' Gardens” de 1983 e que de modo geral fala sobre os diferentes níveis de discriminação que são definidos pela tonalidade da pele negra.
O “pardo” termo que antigamente informava o negro de pele mais clara, fruto da miscigenação entre negros e brancos, sempre foi aquele sujeito que adentrou espaços brancos e foi tolerado pela branquitude, embora não integralmente. Essa tolerância que muitas vezes foi lida como aceitação se dava principalmente porque a branquitude brasileira precisa se enxergar no outro para criar laços. As variações do pardo determinam o grau de tolerância: quanto mais próximo do lado branco da miscigenação mais tolerado.
Só que o aumento ascendente dos matrimônios e relacionamentos interrraciais, especialmente dos pardos com brancos, deram outra cara ao fruto da miscigenação. Inclusive afirmar que o Brasil é pardo é reconhecer essa miscigenação como histórica. O ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, disse em 1994 que “tinha um pé na cozinha” (negou ter usado essa expressão após duras manifestações de entidades negras). Óbvio que foi uma fala racista mas, expressa o status da formação do povo brasileiro, que é negro, indígena e branco, a mistura das três raças.
Por essas e outras bifurcações da miscigenação e seus frutos é que o pardo deve ser discutido, assim como o colorismo também. Do contrário se dá margem para o fortalecimento da afroconveniência, que é o comportamento de alguns indivíduos negros que só assumem a negritude quando esta lhe traz algum benefício social ou a malandragem branca de lembrar que é pardo apenas para se aproveitar dos avanços que a luta negra coletiva conquista.
Isso já vem acontecendo no Brasil desde que as cotas raciais foram implementadas. Soubemos da avalanche de fraudes de pessoas que subtamente descobriram um avô/avó negros ou daqueles que de fato são produtos da miscigenação mas sempre negaram sua negritude mas, para ter acesso às universidades como cotista resolveram parar de alisar os cabelos, se vestiram de “africanos” e passaram a usar todos os clichês de militância que antes tanto criticavam.
Cabe lembrar também que o dinheiro ou a ascensão socioeconômica, que sempre foi mais possível para pardos, acaba por embranquecer negros, ou seja, no Brasil o racismo arrefece a medida em que o sujeito negro atinge um patamar mais alto e sai da base da pirâmide e, nesse caso, mesmo os retintos (negros de pele escura e traços faciais não miscigenados) são menos expostos ao racismo ou mais tolerados pela branquitude.
Então, dizer que o candidato ACM Neto e todos os canditados e candidatas que se autodeclararam pardos de olho no fundo eleitoral e no apelo da negritude por representatividade política, não são de fato pardos talvez não seja um bom argumento, uma vez que eles, como todo e qualquer brasileiro incluindo o ex-presidente FHC e o Caetano Veloso (que também se reconhece pardo), pode se autodeclarar e tirar algum parente negro distante da cartola, comprovando assim a mistura racial que compõe a sociedade brasileira. Afinal, somos um país pardo, até mesmo os negros mais escuros e sem traços que expressam a miscigenação podem se dizer livre dela ou “negro puro”.
Quantos negros retintos espalhados pelo Brasil afora não tem também um parente branco pra chamar de seu? Muitos, mas o racismo é tão forte que não se cogita que isso seja possível e, exatamente por isso que a autodeclaração por si só já é uma fraude, ela é um privilégio social dado a todos, menos aos mais escuros, os retintos.
O melhor seria levar a sério o colorismo como uma discussão que é intrínseca ao debate racial, assim como a afroconveniência e a impossibilidade de todo e qualquer preto (negro retinto, escuro e indisfarçável) se autodeclarar. Se para essa categoria de negritude que recebe as maiores e mais proeminentes violências racistas diárias não há questionamento quanto a sua negruitude, todas as outras devem ser avaliadas do ponto de vista da visualidade como determinante da discriminação e exclusão.
Em outras palavras, é preciso discutir quem e o que é ser pardo no Brasil de 2022, onde a miscigenação continua sendo usada como instrumento de embranquecimento da população e, seus frutos, das mais diversas tonalidades, usados como elemento de desqualificação e descrença pública de todo debate sobre a condição do negro na atualidade. Nem todo pardo é negro e isso precisa ser entendido como parte fundamental do novo capítulo do debate racial no país.