Em 28 de janeiro de 1985, no A&M Studios, em Los Angeles, 45 das maiores estrelas do pop norte-americano se reuniram, capitaneadas pelo maestro Quincy Jones, para gravar uma composição escrita, literalmente, a ”toque de caixa” pelos geniais Michael Jackson e Lionel Richie. O resto é história. E uma história muito bacana da junção de talentos originais e incontestáveis que encantou o mundo com o refrão chiclete mais querido de todos os tempos:
“We are the world, We are the children.
We are the ones who make a brighter day, so let's start giving”
E essa história é contada por aquele que funcionou meio que como um diretor desse evento em um dos documentários mais esperados da Netflix neste ano de 2024: “The Greatest Night in Pop”, em português recebeu o título "A Noite que Mudou o Pop". O documentário foi dirigido pelo diretor e produtor vietnamita-americano Bao Nguyen, que também dirigiu "Be Water", sobre o lendário Bruce Lee.
A junção dos maiores gigantes da música da época foi tão bem sucedida que, nos idos de 1985 e 1990, era impossível não ouvir nas rádios a execução da música ao menos uma vez ao dia e, até hoje, ela é lembrada, passando de geração para geração, nem que seja por memes como o do Bob Dylan perdido no meio daquele Olimpo.
O produto dessa junção é louvável, tanto pela disponibilidade das grandes estrelas que se reuniram pela madrugada afora, depois de terem participado de uma premiação badalada, quanto pela música que marcou gerações e chamou atenção do mundo para um problema urgente, a fome. Mas é importante pensar em como a caridade não pode se limitar a “dar o peixe”, ela precisa ser empoderadora, ou seja, precisa trabalhar para que as causas do problema sejam erradicadas e para que as pessoas possam pescar, caçar ou seja lá o que for mais conveniente para elas de acordo com as avaliações e escolhas próprias.
É justo valorizar quem se dispõe a ajudar, mas é fundamental fortalecer aqueles e aquelas que realmente lutam pela autonomia de todos os povos. E daí que isso não foi feito e, ainda hoje, muitos que aplaudiram, aplaudem e até consumiram o produto “USA for Africa” atuam de maneira favorável para a perpetuação e manutenção das opressões de raça, classe e gênero que ainda produzem as desigualdades que são as causas da fome.
É fato que nem sempre esse apoio às opressões é consciente, daí a necessidade de ouvir, ler e discutir sempre as causas dos males do mundo, para ajustar nossa conduta para além de ações com apelo midiático ou de grande repercussão.
A ideia da gravação foi inspirada nas ações do cantor britânico Bob Geldof que também culminaram em um evento histórico, o Live Aid, que reuniu um Olimpo branco e focado no rock’n’roll. Com toda a humildade surpreendente para estrelas do seu calibre, Harry Belafonte usou o incômodo com a pegada "white savior" do Live Aid e idealizou um evento onde a negritude norte-americana também pudesse manifestar apoio aos seus irmãos de infortúnio racial que padeciam dos resultados históricos do colonialismo que saqueou a África por séculos.
Isso, talvez, seja a fonte do empenho comovente e da entrega integral de três estrelas negras que abraçaram a ideia de Belafonte: Michael Jackson, Lionel Richie e Quincy Jones.
Então, temos até aqui duas lições importantes que a ação "USA for Africa" e a gravação de “We are the world” nos deu:
- conscientizar deve estar atrelado a toda e qualquer evento de caridade, fazendo as pessoas que ajudam e que recebem entenderem que a condição de necessidade social é resultado de omissões históricas que produziram desigualdade de raça, classe e gênero na maioria das sociedades ao redor do mundo;
- o protagonismo negro, feminino ou das pessoas de classe social baixa é fundamental, garantindo que o lugar de fala seja ativo e atuante e não passivo ou apenas representativo.
Mas há também uma terceira lição, fundamental a ser aprendida e propagada e que anda tão falha em nossa sociedade: a real diversidade e seu potencial de aglutinar forças através da junção de talentos.
Quando Quincy Jones coloca uma placa na porta do estúdio de gravação com os dizeres “Deixe o Ego do lado de fora”, do alto de sua sabedoria, está alertando para uma tendência humana que é de hierarquizar pessoas.
Ao estabelecermos a ideia de que realmente o mundo é composto por pessoas que merecem estar acima e outras abaixo, estamos alimentando as desigualdades, mas também inviabilizando a expressão da riqueza humana que é dada pela multiplicidade de talentos e vivências.
Em um mundo cada vez mais competitivo, onde os egos estão sempre ditando as regras, as opressões de raça, classe e gênero, se tornam matéria-prima de segregação que tanto impede nosso desenvolvimento como sociedade, como coletividade.
Não é conversa emocionada dizer que é na junção de diferenças que as forças se potencializam e movem grandes moinhos de atrasos e impedimentos que nos deixam estagnados no coletivo e na individualidade. Mas para aproveitar e valorizar os potenciais humanos que são tão diversos, devemos deixar o ego do lado de fora de nossas vidas, aprendendo a amar e valorizar o diferente e não a temer e estigmatizar.
Para além do elemento político que é fundante das opressões, é hora de observarmos o quanto nossa subjetividade é afetada pelas ideologias de supremacia e superioridade dada pelas diferenças naturais que representam a verdadeira riqueza humana da nossa sociedade.
No mais, assistam, relembrem e se emocionem com um evento da música que mesmo depois de quase quatro décadas ainda é capaz de nos ensinar tanto.