O feminismo é plural e cheio de impasses, ramificações e contradições. Isso se dá porque mulher não é uma categoria social universal. Ou seja, somos diversas não apenas na superfície, mas também no mais profundo de nossas vivências, experiências, comportamentos, estudos, interesses, etc.
O que nos une é a confluência dos caminhos traçados pelas violências que nos constituem como seres de uma determinada categoria social, mulhereS. Isso significa que ser mulher é um ponto em comum, mas que outros lugares sociais atravessam essa marcação social e são dados pela raça, pela classe, pela vivência sexual, pela condição intelectual, pelo lugar que moramos, pelo nosso peso corporal, pela nossa idade, pela nacionalidade e regionalidade, pelo território, pelo status psíquico e tantos outros fatores. Cada uma dessas especificidades forma grupos distintos dentro de um mesmo grupo e as características deste, por sua vez, formam um padrão de violência distinto mas, atuante, alternada ou simultaneamente, com os outros. Mas todos eles se encontram indiscutivelmente na encruzilhada do gênero mulher.
Sendo assim, é impossível que haja uma homogeneidade nos discursos e percursos, mas é perfeitamente possível e desejável que haja homogeneidade no desejo por emancipação social plena e pelos “sapatos” que cada uma calça para se mover nesses espinhosos e tortuosos caminhos.
E isso não se faz com tranquilidade e sem bons e enriquecedores embates e confrontos. Por isso sou uma defensora aguerrida da SORORIDADE, que não é blá-blá-blá de amor incondicional e tolerância integral, NÃO. Mas é, SIM, o respeito e reconhecimento das mais variadas formas em que a violência se faz presente, cerceando e fragilizando a todas em diversos níveis da estrutura que nos forma como seres sociais e humanos, acima de qualquer questão.
Tudo isso é muito natural.
O que não é natural é que nossa principal arma de luta, o discurso, seja atravessado pela irresponsabilidade e narcisismo patriarcal de certas masculinidades que se sentem ameaçadas por nossos avanços e permanências nos espaços negados historicamente.
Como é o caso do deputado federal Nikolas Ferreira que, em pleno 8 de março, Dia Internacional da Mulher, tenta de maneira patética e assustadoramente suja roubar o protagonismo feminino dentro de uma casa legislativa.
Para além do discurso transfóbico com sinais óbvios de uma manobra psíquica de autodefesa de um ego que visivelmente não se reconhece como se afirma (homem) e tenta fugir desse traço de sua personalidade e sexualidade, existe outra questão: a invasão deliberada de um lugar que não lhe pertence.
Que lugar?
O Feminismo ou a luta histórica das mulheres pelo direito à existência plena e irrestrita.
Muitas mulheres feministas acreditam na participação discursiva de homens no bojo das nossas discussões. Muitas não. Esse embate existe e é legítimo. Mas não existe embate na certeza de que SE houver a participação masculina, ela não é autônoma e tampouco dita regras absolutistas e antidemocráticas.
Trocando em miúdos, precisamos dizer que Nikolas não fala pelas mulheres, a menos que alguma individualmente lhe dê essa outorga. Mas daí seria o caso dele dizer quem, quando, como e porquê lhe deu. Além do que, é preciso estabelecer sem hesitar que mulheres que conscientemente outorgam suas vozes a homens devem se responsabilizar integralmente pelos danos pessoais que isso acarreta e entender que essas mulheres invariavelmente são subopressoras, atuam contra seu grupo social e, seja lá por qual razão, não lutam e nem desejam a emancipação social.
É razoável discutir com mulheres feministas as questões atreladas a transfeminismo ou a qualquer outro feminismo, guardado o devido respeito que é de direito a todas nós, inclusive as que não se posicionam como feministas. Mas isso será feito entre mulheres e não entre opressores históricos, como é o caso do deputado branco, (que se diz) hetero cisnormativo e de padrão social privilegiado o bastante para lhe garantir impunidade mesmo cometendo publicamente e reiteradamente o crime de transfobia.
O deputado não fala e jamais falará por mim e pelas mulheres que têm um mínimo de entendimento de que isso é uma manobra perversa - e totalmente consciente - que tem como intenção principal desestabilizar e tumultuar nossas lutas e conquistas. Um verdadeiro acinte muito bem “pensado” por uma masculinidade confusa e duvidosa de sua própria situação, que teme avanços já conquistados ou em vias de se conquistar na luta pela nossa emancipação plena.
Aqui não, keridinho!