Sejamos honestos e humildes em admitir que não é apenas no futebol que os “hermanos” tem se saído melhor que nós. Na política também. Pelo menos é a conclusão que a lucidez nos leva quando pensamos nos atentados golpistas praticados pela gangue bolsonarista e que o Fantástico do último domingo nos atualizou sobre a profundidade da violência e da insanidade dadas pelas imagens detalhadas da barbárie. Aos mais atentos, inclusive, o que vimos em Brasília nem de longe é novidade. É o ápice do que vem amadurecendo e ensaiando há tempos no submundo da mentalidade política de grande parte da população brasileira que esteve lá ou apoiou a distância. Ora alimentados pela grande mídia hegemônica antipetista, ora pela negligência de uma esquerda emocionada, a ofensiva antidemocrática não pegou de surpresa aqueles que conseguem ir além das querelas inúteis dos alienantes e badalados realities shows.
Aliás, se há uma lição oculta dada pelos “shows de realidade” que substituíram as famigeradas novelas é a força das mobilizações populares e o quanto a opinião pública é facilmente conduzida e manipulável. Mas não é esse o ponto. O ponto é que a essência do discurso bolsonarista, para além do antipetismo, é o anti-comunismo. Sim, esse espantalho costurado e adornado pelas ditaduras militares que jamais foram retirados dos cercados da “província Brasil”. Mas ele só existe porque vive livremente entre nós, está mas escolas, nas faculdades, nos meios de comunicação de massa. E principalmente, no lugar mais perigoso em que poderia se acomodar: o inconsciente coletivo.
“Minha bandeira jamais será vermelha” não é só um bordão característico da histeria anti-política que escolheu o ex-presidente Bolsonaro como seu principal representante. É a confissão inconsciente de um medo e de uma crença alimentada por anos de ignorância imposta e apego a uma zona de conforto social chamada "privilégios".
Mas isso só é possível porque nunca, jamais, em momento algum o Brasil teve a coragem de enfiar o dedo nas suas feridas ainda abertas, ainda sangrentas e cobertas com um esparadrapo do pacto narcísico da branquitude (termo cunhado pela grande intelectual Cida Bento em seu livro homônimo). Que feridas são estas? A destituição e roubo do patrimônio fundiário indígena, a escravidão africana e a ditadura militar.
Esses três fantasmas ainda reverberam, ditam regras e moldam toda a sociedade. E é vital para o Brasil que sejam extintos sumariamente. Mas isso demanda coragem.
E é aí que nossos hermanos ganharam velocidade e a promessa de um expurgo coletivo fundamental das ideias conservadoras que se instalam facilmente nos porões da frágil consciência das massas populares.
Nunca Mais e nossa Comissão da Verdade
A Argentina viveu o processo ditatorial mais feroz de sua história entre 1976 e 1983, quando a então presidente María Estela Martínez de Perón foi deposta e, a Junta Militar, composta pelos três segmentos das Forças Armadas(o Exército, a Marinha e a Aeronáutica) articulou e executou um golpe militar, colocando o general Rafael Videla no poder. Golpe político é a definição da derrubada do sistema democrático de escolha de um representante de uma nação e a imposição de um representante escolhido por uma minoria sem autorização da população como um todo.
Em dezembro de 1983, Raúl Alfonsín assumiu a presidência da Argentina e iniciou um período de reconstrução e consolidação da democracia, recompondo direitos, garantias, liberdades individuais e coletivas para os cidadãos.
Uma das primeiras medidas do governo eleito foi criar a Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), já em 1983. Essa comissão elaborou um minucioso relatório chamado “Nunca Más” que foi entregue ao presidente em 20 de setembro de 1984 e imediatamente publicado.
Entre os meses de abril e dezembro de 1985, ocorreu o julgamento das juntas militares, que incidiu sobre nove militares que dirigiram essas juntas durante a ditadura.
E é sobre esse tenso processo histórico de restituição e defesa da democracia no pós-ditadura militar que trata o excelente “Argentina, 1985”, longa-metragem dirigido por Santiago Mitre, que tem como protagonista o também excelente Ricardo Darín, vencedor do prêmio de melhor filme estrangeiro no último Globo de Ouro.
O filme narra o trabalho do promotor público e sua pueril equipe, na captação e organização de provas e depoimento das vítimas da ditadura militar na Argentina. Diferentemente deles que levaram a julgamento a junta militar criminosa imediatamente após o fim da ditadura como parte da restituição da democracia, nós nos contentamos com a Lei da Anistia e com o bem sucedido movimento das “Diretas Já”. Erro que mostra atualmente seus efeitos e consequências, ao som do negacionismo cínico dos que pedem a volta da ditadura e o som estarrecedor dos parlamentares que homenageiam os torturadores como Brilhante Ustra, por exemplo.
É um filme que traz obviamente uma romantização dos processos históricos e, por isso, não é extremamente fiel no relato de todos os fatos ocorridos nesse processo que ainda está em andamento por lá. Mas é preciso entender que é cinema, outro ritmo e possibilidades mais enxutas de desenvolvimento de uma narrativa, sobretudo de tamanha complexidade e diversidade de nuances e detalhes, o que implica em perdas de fatos. Mas de maneira alguma atrapalha naquilo que é fundamental propagar: é preciso resolver as pendências históricas ou seremos dizimados por elas.
Daí a necessidade de, especialmente nesse momento de ataque à democracia, resgatar o fruto do precioso da nossa competente Comissão Nacional da Verdade, que foi criada no governo da presidenta Dilma Rousseff pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012 e que teve a nobre e cirúrgica missão de apurar as gravíssimas violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, ou seja, nos períodos sangrentos da ditadura brasileira.
“Conheceis a verdade e a verdade vos libertará” João 8:32
O extraordinário trabalho da nossa Comissão da Verdade (que na verdade foi a formalização da atuação que ongs e grupos independentes já vinham fazendo) culminou em um relatório entregue em dezembro de 2014, trinta anos depois do fim da ditadura, que nos deu algumas categóricas conclusões: que a ditadura militar que governou o país de 1964 a 1985 cometeu crimes contra a humanidade; e que a grave violação de direitos humanos permanece em curso.
Nossa Comissão ainda listou detalhadamente a morte e/ou desaparecimento de 434 pessoas durante a ditadura militar e 377 agentes de Estado como protagonistas de sequestros, torturas, assassinatos, desaparecimentos forçados, violências sexuais e ocultação de cadáveres.
Esses agentes de Estado não foram punidos e sequer a massa popular brasileira conhece seus crimes. E por isso mesmo eles continuam de alguma forma revivendo e reverberando o horror da ditadura que já era em si uma reverberação dos horrores da escravidão e do genocídio indígena que ainda está em curso.
Enquanto a verdade sobre todos os crimes políticos cometidos no Brasil desde a sua formação não forem jogados na cara da população brasileira e nossos algozes, muitos deles ainda ocupando cargos e bancando os baluartes da moral e bons costumes) não forem confrontados e punidos exemplarmente, episódios como a invasão e depredação golpista do Congresso Nacional continuará servindo de adubo para as ignorâncias perniciosas que cometeram a indecência de defender um defensor da tortura e da barbárie.
Tanto o filme ‘Argentina, 1985’ quanto a Cópia do Relatório da Comissão (disponível no Centro de Referência Memórias Reveladas, do Arquivo Nacional) deveriam ser veiculados à exaustão por todos os meios sociais, ainda que com o delay de mais de trinta anos. Não podemos mais esperar. Só a verdade pode salvar o Brasil.